A expansão do ensino jurídico no Brasil é uma realidade. Há menos de três décadas a grande maioria das faculdades (ou de cursos, dependendo da estrutura da instituição) estava concentrada nas capitais ou em cidades de igual porte. A predominância era de estabelecimentos públicos, sendo diminutos os congêneres privados. Em cada ano ou semestre o processo seletivo de ingresso (invariavelmente o vestibular, mercê das regras do Ministério da Educação para esse setor) permitia a formação de uma ou duas turmas, com média de 50 alunos cada. Ao final dos cursos (quatro ou cinco anos), o mercado não absorvia satisfatoriamente os diplomados e os excedentes partiam para engordar outras fatias produtivas (iniciativa privada, empregos públicos etc.) ou voltavam aos bancos universitários, mirando requalificação que lhes desse melhor retorno. Época dos bacharéis médicos, dos bacharéis administradores, dos bacharéis dentistas, dos bacharéis fisioeducadores.
O quadro atual é bem diferente. Há um “quê” de popularização nas escolas de formação de profissionais do Direito, que se reflete no endereço desses estabelecimentos, que saíram da quase exclusividade das grandes cidades para atender aos locais mais inusitados, indo da periferia das capitais às urbes interioranas mais distantes. Já há casos de faculdades funcionando em área rural.
Mas, o que teria gerado essa questionável revolução no ensino do Direito, tanto em números como em localização? Pelo período em que ocorreu — início dos anos 90 para cá — atribui-se, com razoável razão, aos fluídos da Constituição de 1988 e, recuando-se um pouco nas datas, ao movimento por eleições diretas (1984/85) e à Assembleia Nacional Constituinte (1986/88). Em primeiro lugar, o despertar da cidadania da nação, adormecida pelos acontecimentos de 31 de março de 1964 e do regime político então instalado, que privilegiava o silêncio e a acomodação.
[Rememore-se que a tessitura da Constituinte de 1988 foi a mais híbrida de quantas já oficiaram em nosso país, integrada por segmentos dos mais diversos matizes sociais (trabalhadores, empresários, ecologistas, educadores, intelectuais, religiosos e outros tantos), em um embate de forças e ideias determinante da composição e da transigência, advindo uma Lei Fundamental ideologicamente difusa].
Com a nova Carta e principalmente pela forma como ela foi construída, com farta participação do povo, mediante discussões e propostas, a sociedade brasileira sentiu-se estimulada a buscar os seus direitos: uns sonegados, outros em espectativa e muitos inventados. O importante é que a letargia e o comodismo perderam espaço. Para tanto, isto é, para a reivindicação do que as pessoas entendiam ser o justo, um endereço era inevitável: o do Poder Judiciário.
Mas, cadê os quadros para viabilizar esse acesso? O número de magistrados era suficiente? Idem de serventuários qualificados? O Ministério Público estava suficientemente preparado para essa demanda, nos limites das suas atribuições? E a advocacia, pública e privada, dispunha de profissionais em número adequado para socorrer a essa nova grita? A resposta é negativa para todas as indagações. A solução encontrada pelas leis naturais e pela irrevogável lei da oferta e da procura foi a incrementação de cursos jurídicos, paralelamente à realização de concursos públicos e à abertura de escritórios especializados.
Tal explosão de litigiosidade foi alimentada pelas garantias que afloraram com a nova ordem constitucional, como por exemplo a de que trabalhadores agrícolas não poderiam ter tratamento previdenciário diferente daquele dispensado aos da seara urbana.
Pois foi nessa época que a atividade forense começou a experimentar também um redirecionamento para o campo da informática, com o uso dos computadores, se bem que ainda como meros sucessores da máquina de escrever, acrescidos de memória. Com um volume de ações como nunca dantes visto, não mais restava espaço para os manuscritos e para as olivettis, as remingtons e similares. Varas federais que antes tinham acervo inferior a mil processos passaram em pouco tempo para a casa dos 30 mil. O Judiciário estadual também não foi poupado e teve que readequar-se.
Estabelecido o quadro de enorme carência de profissionais jurídicos, natural o advento de novas escolas formadoras dessa mão de obra especializadíssima. Só que não houve um equilíbrio entre oferta e demanda, ganhando a primeira. Faculdades e cursos em profusão, com o estímulo empresarial do baixo custo (“só giz e gogó”, disse-me um investidor da área...), naturalmente geraria — como de fato gerou — uma abundância de profissionais de qualidade duvidosa, expostos a outra lei que não está nos códigos: a da seleção natural.
O sobejo dos bacharéis não absorvidos pelo mercado advocatício ou dos entes públicos envolvidos com a atividade jurisdicional (Ministério Público, procuradorias, Defensorias e magistratura), ao invés de desaguar em áreas alheias ao Direito (engenharia, comércio, indústria, burocracia...), passou a migrar também para o campo do ensino jurídico, em rota perigosa e apta a formar um ciclo vicioso preocupante: fracos professores formando mais fracos ainda profissionais, que retornam às instituições de ensino para lecionar a novos estudantes fracos, que um dia retornarão à “cátedra” para o mesmo fim...
O elemento vocação, tão prezado pelos que escolhiam a senda educacional, passou a não valer muito. O importante é arranjar um posto de trabalho. Ser professor deixou de ser primacialmente uma missão e tornou-se um emprego; um ganha pão.
Lastimo que seja assim. O vocacionamento para a educação jurídica não pode ser substituído somente por uma oportunidade de trabalho fácil (?) para os jovens bacharéis. A análise detida de um currículo bem construído e, sobretudo, o crivo do pendor do pretendente para ser elo da perpetuação do saber, não podem ser substituídos pelo recrutamento de ocasião, como o que atende a uma placa de “há vagas” pendurada ao portão de uma fábrica ou ao balcão de um botequim. Essa trôpega formatação do quadro de educadores jurídicos gera duplo castigo: para o lente improvisado, já que fadado a passar o resto da vida “somente ensinando” (com toda a equivocada carga pejorativa que a expressão conduz) e para os alunos, que terão um professor desmotivado e, não raramente, despejando as suas frustrações sobre a turma.
Ivan Lira de Carvalho é juiz federal em Natal (RN), doutor em Direito, professor da UFRN na graduação e no mestrado em Direito.
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