quarta-feira, 30 de março de 2011

Comitê Estadual da Campanha Nacional Permanente Contra Tortura / MA

Tribunal de justiça do Maranhão
Ministério Público Estadual
Gerência de Estado de Segurança Pública
Gerência de Estado de Justiça e Cidadania
Procuradoria Geral do Estado
Defensoria Pública do Estado
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
Ordem de Advogados do Brasil
Càritas Brasileira
Associação de Saúde da Periferia
Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente "Pe. Marcos Passerine"
Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz
Pastoral Carcerária
Comissão Pastoral da Terra
Comissão Batista Maranhense
Federação das Entidades Representativas de classe da Segurança Pública
Fórum da Moradia
União Estadual por moradia popular
Grupo de Mulheres da Ilha
Instituto em Defesa da Cidadania
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Núcleo de Assessoria Jurídica Popular "Negro Cosme"
Sindicato dos Policiais Civis
Centro de Cultura Nega
Sindicato dos Servidores Públicos do Maranhão

SOS TORTURA
CAMPANHA NACIONAL PERMANENTE CONTRA TORTURA
COMITÊ DO ESTADO DO MARANHÃO
RELATÓRIO DE UM ANO DA CAMPANHA NO ESTADO.
PERÍODO DE ABRIL/02 A MARÇO/03



1. PREÂMBULO

A prática da tortura no Brasil
A prática da tortura no Brasil data dos tempos de sua formação. Povos indígenas e negros foram torturados e dizimados pelos portugueses, com a finalidade de garantir riqueza para a Coroa Lusitana. Mesmo com o advento da República a prática foi mantida, principalmente nos períodos de ditaduras pelos quais o país passou, sendo considerado normal constranger ou impor sofrimentos físicos e mentais com o objetivo de obter informações ou simplesmente castigar os considerados rebeldes ao regime ditatorial.

Na década de 80, a luta pela anistia, pela libertação dos presos políticos e a luta pelas "Diretas Já" implantam no país a necessidade de medidas democratizadoras , as quais ganham materialidade com a promulgação da Constituição de 88, que expressamente, em seu artigo 5º, inciso III proíbe a prática da tortura. Em 1997 é promulgada a Lei Complementar nº 9.455, que define e tipifica a conduta delituosa da tortura.

Entretanto, não bastasse a norma legal, a prática continuou sendo usada corriqueiramente pelas instituições públicas brasileira – corporações policiais e repartições, tendo o Relator especial da ONU, – Nigel Rodley -, em sua visita ao Brasil, no ano de 2000, verificado e atestado que as instituições estatais, como delegacias, presídios e penitenciárias utilizam a tortura como meio para obtenção de provas em processos judiciais e aplicam-na também como forma de castigo. No final da sua visita, o relator recomendou que o Brasil tomasse providências no sentido de erradicar a aplicação intensificada dos métodos de tortura.

Tal recomendação tem um peso significativo, vez que o Brasil faz parte dos Sistemas Internacional e Regional de Proteção dos Direitos Humanos, sendo signatários de pelo menos quatro diplomas internacionais que consagram a proibição da prática da tortura: Declaração Internacional dos Direitos Humanos (1948), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984) e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985).

Diante desse quadro, o Estado Brasileiro e a Sociedade Civil celebram o Pacto contra a Tortura e formulam uma política concreta de combate à prática da tortura. Seu aspecto mais visível é o lançamento do sistema de Disque Denúncia (0800-707-5551), que permite a qualquer pessoa informar notícias de tortura por telefone, sendo conservado o sigilo e o anonimato da autoria. Nasce, assim, o SOS TORTURA, o qual também se constitui em um Banco de Dados que permite identificar quantitativa e qualitativamente as vítimas, os agressores, bem como a tramitação das alegações no Poder Executivo, no Poder Judiciário e no Ministério Público.


2. METODOLOGIA E ESTRUTURA DO SOS TORTURA


O Sistema SOS Tortura, como ficou batizada a Campanha Nacional Permanente contra a Tortura (CNPCT), uma iniciativa da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, tem por finalidade a mobilização e responsabilização, através de esforços conjuntos e articulados entre instituições públicas e organizações da sociedade civil organizada, para identificar, prevenir, controlar, enfrentar e punir a tortura, bem como todas as formas de tratamento cruel, desumano e degradante no Brasil.

O lançamento da Campanha no Brasil ocorreu em 30.10.2001, tendo como ações centrais o Disque Denúncia e o Banco de Dados, a mobilização, articulação e coordenação e o monitoramento dos casos alegados.

A sustentação da Campanha implica na mobilização e organização de Comitês Estaduais e Centrais Nacional e Estaduais, sendo a campanha coordenada nacionalmente por uma Comissão Especial de Combate à Tortura do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Ministério da Justiça.

Os Comitês Estaduais coordenam a campanha em âmbito estadual e as Centrais Nacional e Estaduais serão abrigadas por uma entidade executora – organização não governamental. A Central Nacional é hoje assumida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, com sede em Brasília.



3. A CAMPANHA NO MARANHÃO: DO LANÇAMENTO AO PROTOCOLO DE INTENÇÕES


No Maranhão a Campanha foi lançada em março de 2002, funcionando com o Comitê Estadual, constituído de 13 membros, dentre órgãos públicos e entidades da sociedade civil organizada, sendo coordenado pela Gerência de Segurança Pública (antigamente Gerencia de Justiça, Segurança Pública e Cidadania), a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Maranhão e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.

A Central Estadual foi assumida pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, entidade filiada ao MNDH (Central Nacional).

Durante um ano de sua existência o SOS Tortura do Maranhão recebeu 57 alegações da Central Nacional, sendo as alegações encaminhadas, pela Central Estadual, às autoridades competentes – Ministério Público, Delegacias de Polícia ou Gerência de Segurança e Poder Judiciário para apuração e responsabilização dos agressores e permanentemente são monitoradas, de forma que o Banco de Dados esteja atualizado sobre a tramitação das alegações, permitindo assim observar-se o local da agressão, o perfil da vítima, o agente agressor, o empenho dos órgãos competentes na apuração e o posicionamento dos Tribunais no julgamento dos casos

Na linha da articulação e sensibilização, a campanha foi lançada nos municípios de Caxias, Itapecuru, Araioses, Tutóia e Codó, sendo sempre marcadas por intensa mobilização e participação popular. Também, permanentemente tem sido noticiada na mídia, destacando-se o papel cumprido pelas rádios comunitárias na divulgação da mesma, após a gravação de um spot sobre a campanha.

Para comemorar um ano do SOS Tortura no Maranhão foi assinado o Protocolo de Intenções com adesão de 25 Instituições, dentre órgãos do Poder Público e entidades da Sociedade Civil organizada, seguido da realização de um Seminário e do Planejamento da Campanha para o período de maio/03 a abril/04.


4. ANALISANDO OS CASOS OCORRIDOS NO MARANHÃO


 Perfil Criminológico dos casos de tortura no Estado do Maranhão

O presente levantamento dos casos de tortura no Estado do Maranhão tomou como parâmetro as alegações encaminhadas ao banco de dados do SOS TORTURA no período de 30 de outubro de 2001 até 20 de março de 2003.

Como forma de conhecer e poder debruçar-se sobre a problemática da tortura, vários caracteres do crime foram selecionados, abordando-se tanto o perfil do torturador, quanto da vítima, sem olvidar-se do meio em que ocorreu o delito, o que se coaduna com a trilogia de fatores fundamentais para o estudo da Criminologia moderna.


Assim, para a constituição do perfil do torturador e das vítimas de tortura no Estado do Maranhão são considerados os seguintes indicadores na presente exposição:

1 – Caráter institucional / particular;
2- Tortura / tratamento desumano;
3 – Localidade;
4 – Tortura física ou psicológica;
5 – Perfil das vítimas;
6 – Motivos;
7 – Providências tomadas pelas instâncias competentes;
8 – Forma das lesões;
9 – Instrumentos utilizados.

Passa-se, então, à exposição de cada um dos indicadores acima, sempre com a advertência de que os números a seguir utilizados são referentes apenas aos casos encaminhados ao SOS Tortura através do número 0800-707-5551.

 Caráter Institucional / Particular

ESPÉCIE DE TORTURA QUANTO À PRESENÇA DO CARÁTER INSTITUCIONAL QUANTIDADE
Tortura praticada por servidores públicos 46
Tortura praticada por particulares
12
Consideram-se servidores públicos, para fins desta análise, policiais civis, militares e servidores dos complexos prisionais.

 Tortura / Tratamento Desumano

QUANTIDADE
Tortura 55
Tratamento desumano 3



 Faixa Etária da Vítima

QUANTIDADE
Adolescente 10
Adulto 58
Crianças 7
Não Informado 2
Outros 1


 Localidade

QUANTIDADE
Municípios do interior 38
Capital 20


 Situação atual das providências tomadas pelas Instituições responsáveis

Situação atual QUANTIDADE
Fase judicial 8
Requerimento de instauração de inquérito policial 1
Arquivamento 12
Investigação 18
Aguardando resposta do Ministério Público 29




 Natureza da Tortura

QUANTIDADE
Mental 2
Física 56


 Motivo

QUANT.

EXTORSÃO
01
FORMA DE CASTIGO 20
INTIMIDAÇÃO 06
OBTER CONFISSÃO 19
OBTER DECLARAÇÃO 01
OUTROS 02
NÃO INFORMADO 09


 Sexo do Agente

QUANT.
MASCULINO 49
FEMININO 5
AMBOS 01
NÃO INFORMADO 03


 Sexo da Vítima

QUANT.
MASCULINO 40
FEMININO 06
AMBOS 07
NÃO INFORMADO 05



 Quanto à forma de agressão, instrumento e lesão as formas são muito variadas, podendo ser percebidas na tabela a seguir:

Código Assunto Local de ocorrência Forma agressão Instrumento Lesão Motivo
1 tortura local deserto tapas, chutes, coronhadas cassetete, revolver pt38 hematomas Forma de castigo
2 tortura Delegacia golpes por todo o corpo Pedaços de madeira quebrou a
clavícula Forma de castigo
3 tortura Delegacia várias Não informado não informado Forma de castigo
4 tortura local deserto socos, chutes, cacetada na batata da perna cassetete costas vermelhas, hematomas clavícula quebrada Obter confissão
5 tortura Outros espancamento cassetete hematomas Forma de castigo
6 tortura Delegacia garrafadas com água, batidas com pedaço de pau, toalha molhada, espancamento garrafa plástica com água, toalha, pedaço de pau não informada Intimida-ção
7 tortura Delegacia socos, chutes e cassetadas, arrancam as unhas, choques alicate, cassetete, fio hematomas e fraturas Obter confissão
8 tortura Unidade prisional pancadas socos e chutes Escopetas e pedaços de pau inchaço no rosto e costelas, várias lesões Forma de castigo
9 tratamento
desumano ou degradante Delegacia socos, chutes, pauladas, palmatórias e ameaças Pedaço de pau, cassetete hematomas, fraturas Não informado

10 tortura Delegacia espancamento Cassetete hematomas Obter confissão
11 tortura Delegacia socos, murros, pontapés Cassetete hematomas Forma de castigo
12 tortura local deserto espancamento Cassetete de borracha olho roxo Intimida-ção
13 tortura Residência verbal e física Cassetete hematomas e psíquicas Extorsão
14 tortura Delegacia socos, eletrocutação, afogamento, coronhadas e sufocamento Cassetete, revolver, saco plástico, apar. Eletroche hematomas pelo corpo, costela quebrada e inchaços Obter confissões


15 tortura Outros chutes murros e outros não informados Não informado fratura no braço direito e dores no pescoço Obter confissões
16 tortura Delegacia espancamentos Não informado não informado Obter confissão
17 tortura Delegacia chutes, cortes com facão e cassetete Facão e cassetete ferimento na cabeça e hematomas Não informado
18 tortura Residência bate com objeto Pau cabeça machucada, corpo e rosto Não informado
19 tortura Delegacia espancamento Cassetete hematomas Obter confissões
20 tortura Quartel espancamento Cassetete não informado Obter confissões
21 tortura Batalhão da pm espancamento armas de fogo, algemas, pauladas corte na cabeça, hematomas Obter confissões
22 tortura Residência espancamento, tapas de no rosto e agressões verbais cinto de couro, vassoura, chinelo e copo de vidro hematomas nas costas, pernas e abdome Forma de castigo
23 tortura Delegacia espancamentos, palmatória, disparo de tiros Palmatória e arma de fogo não informado Não informado
24 tortura Delegacia espancamento Não informado não informado Não informado
25 tortura Delegacia chutes, espancamento e murros na cabeça Corda e ripa de madeira fratura no braço, punho, clavícula, hematoma no corpo Intimida-ção
26 tortura Residência mental Arma de fogo, espada não informado Intimida-ção
27 tortura Unidade prisional não informada Não informado não informado Intimida-ção
28 tortura Delegacia espancamento Armas, algemas, pau hematoma, cicatriz perna esq. pulsos, ouvidos estour. Obter confissão
29 tortura Outros espancamento e afogamento Madeira e arame farpado não informado não informado
30 tortura Delegacia espancamento Não informado não informado não informado
31 tortura Residência empurrões, socos, pontapés, cassetete, coronhadas na cabeça e estômago Cassetete e revolver corte profundo na cabeça, hematoma trauma psicológico Intimida-ção
32 tortura Delegacia sal comida, privação comida, espancamento, afogamento,cassetete no anus Cassetete, corrente de moto, revólver diversas, hematomas fraturas na perna Forma de castigo
33 tortura Delegacia coronhadas no tórax e rosto Metralhadora hematoma tórax, lesões internas Forma de castigo
34 tortura Delegacia espancamento Não informado hematomas nas mãos, rosto, costelas e pernas Forma de castigo
35 tortura Outros espancamento Não informado hematomas Forma de castigo
36 tortura Residência espancamentos, ameaças Diversos hematomas Forma de castigo
37 tortura Delegacia não identificado Não identificado não identificado Obter confissões
38 tortura Delegada espancamento Não informado não informado Obter confissão
39 tortura Delegacia espancamento Cassetete hematomas Forma de castigo
40 tortura Residência socos, pauladas Pedaço de pau olho direito inchado Forma de castigo
41 tortura Residência não identificada Madeira, pedra em todo corpo Forma de castigo
42 Tratamento desumano ou degradante Residência tapas no ouvido, joelhadas na barriga, coronhada na cabeça Arma de fogo não informada Obter confissão
43 tortura Delegacia não informado Não informado não informado Obter confissão
44 tortura Outros espancamento Não informado hematomas pelo corpo Forma de castigo
45 tortura Residência chutes Escopetas chutes hematomas no olho, rosto Obter confissões
46 Tratamento desumano ou degradante Residência estupro e ameaça de morte Não informado não informado Provocar ação ou omissão criminosa
47 tortura Outros choque elétrico, chutes Arma calibre 38 hematomas, cortes Forma de castigo
48 tortura Quartel asfixiamento, enforcamento, murros Saco plástico não informado Obter confissões
49 tortura Outros não informado Não informado não informado Obter confissões
50 tortura Delegacia não informado Não informado não informado Obter declaração
51 tortura não informado não informado Não informado não informado Não informado
52 tortura Delegacia não informado Não informado não informado Obter confissão
53 Tratamento desumano ou degradante Outros não informado Instrumento não informado Não informado
54 tortura local deserto espancamento, estupro Alicate orelhas mutiladas Forma de castigo
55 tortura não informado não informado Não informado não informado Forma de castigo
56 tortura Residência não informado Não informado não informado Forma de castigo
57 tortura Unidade prisional espancamento, privação de remédios Não informado não informado Outros


A importância da análise de todos os fatores acima se assenta na utilização de diversos índices em conjunto e não de um único indicador isolado. Tal procedimento se coaduna com a moderna Criminologia. Esta, em seu início, tratava de explicar a origem da delinqüência, utilizando o método das ciências, o esquema causal e explicativo, ou seja, buscava a causa do efeito produzido.

Academicamente a Criminologia já tentou explicar a causa dos crimes no próprio criminoso, depois na sociedade.

Isoladamente, tanto as tendências sociológicas, quanto as orgânicas fracassaram. Hoje em dia fala-se no elemento bio-psico-social.

O presente estudo tem o mérito justamente de transitar por diversos fatores para estudar a prática da tortura, o que poderá subsidiar os estudiosos de referido delito.

Assim, analisando-se os dados coletados pelo SOS Tortura conclui-se que no Estado do Maranhão:

a) a prática da tortura institucionalizada se apresenta em larga escala, merecendo providências urgentes das instâncias competentes;
b) apesar do número de adultos ser a grande maioria, a quantidade de crianças deve preocupar pelo percentual de quase 10% ( dez por cento ) dos casos ;
c) qualquer programa que vise conscientizar / reprimir a prática da tortura deve considerar o Estado do Maranhão como um todo já que o número de denúncias é expressivo, seja na capital (34,48 %), seja no interior ( 65,51 %);
d) situação mais preocupante se encontra nas providências tomadas pelos órgãos competentes uma vez que apenas 13% dos casos encaminhados pelo SOS Tortura as instituições públicas tiveram processos ajuizados, enquanto que a maior parte ou foi arquivada ou se encontra em fase investigativa, o que demonstra ausência de medidas concretas na repressão de referido delito;
e) a Central do SOS Tortura não tem sido informada em grande parte dos casos sobre as providências tomadas pelos órgãos competentes o que se mostra descumprimento do Protocolo de Intenções assinado em março de 2003. Observe-se que aproximadamente 50% dos ofícios que aguardam resposta do Ministério Publico Estadual são do primeiro semestre de 2002.



5. CONCLUSÕES: DIFICULDADES E DESAFIOS


O primeiro aniversário da Campanha Nacional Permanente contra a Tortura no Maranhão revelou um importante avanço: a exposição da existência da tortura como questão social urgente, caracterizando-a com um perfil marcadamente institucional, presente principalmente no interior do Estado, onde a defesa dos direitos humanos é acentuadamente dificultada pela desorganização da sociedade civil na maioria das cidades, bem assim pela ineficiência de instâncias oficiais de fiscalização e responsabilização, seja por atitudes coorporativistas, seja pela lentidão do sistema .

Além disso, a articulação de uma ação sistêmica entre Poder Público e sociedade civil organizada através de um Protocolo de Intenções faz reconhecer o Comitê Estadual da Campanha Nacional Permanente contra a Tortura como locus privilegiado para o recebimento de notícias de tortura, o que potencializado pela possibilidade da transmissão confidencial, sigilosa e gratuita através do SOS TORTURA

A utilização de um Disque Denúncia facilitou o acesso do público em geral a um instrumento para registrar as notícias de tortura, desencadeando o processo de responsabilização. A partir da demanda criada, percebeu-se que essa responsabilização somente seria efetiva se se conjugasse seu acompanhamento sistemático com a possibilidade de articulação interinstitucional. Não efetivar tal articulação implica em retardar a possibilidade de punição do torturador, permitindo a impunidade e incentivado a reincidência.

Um crucial desafio a ser enfrentado é quanto ao retardo na responsabilização, o que é de ser creditado à falta de formação das instâncias oficiais competentes para a identificação dos casos de tortura, independentemente do exame de corpo de delito, eis que os crimes tipificados na Lei n º 9.455/97 são autônomos. Assim, algumas das investigações que embasam as ações penais têm sido alongadas também por inadequação das perícias oficiais.

Assim, a capacitação dos operadores dos sistemas de Segurança e Justiça é passo imperativo para a efetiva responsabilização do torturador, inclusive através de instrumentos legais até aqui insuspeitos, como a ação de improbidade administrativa e da ação regressiva, quando o agente do delito é funcionário público, na definição do termo pelo Direito Penal.

Não basta, portanto, que as instituições públicas e privadas sinalizem que a tortura é inadmissível, através da assinatura de um Protocolo de Intenções. É indispensável que a cultura e a prática internas de cada organização envolvida reproduzam meios eficazes para que a abjeção da tortura seja eliminada. Dois instrumentos legais já foram publicados nesse sentido: A Recomendação n º 02/2003, da Procuradoria Geral de Justiça, e a Recomendação n º 01/2003, da Procuradoria Geral do Estado, em que as respectivas Administrações Superiores orientam seus agentes a procederem os meios processuais necessários, na esfera de sua legitimidade funcional, para a responsabilização dos torturadores (Ver as Recomendações em anexo.

O caminho é extenso e a vigilância há que ser constante. Ainda sobrevive em boa parte do senso comum da população, atemorizada pela onda de notícias sobre insegurança pública, a impressão de que são legítimas ( e desejáveis) as soluções taliônicas e de aflição contra aqueles que, em dadas situações , representam a própria face imaginada da violência. A tortura é, então, ainda considerada como instrumento de vingança social, o que é inadmissível em um ambiente comunitário que se pretende democrático e assegurador dos direitos humanos. É preciso interiorizar as ações da campanha.

Permitir a tortura segundo os indicadores aqui relatados; - praticada por funcionários públicos em pequenas cidades do interior -; é incentivar um Estado algoz do cidadão, deslegitimando seu poder, pela inversão de seu papel. Que a segurança pública seja direto fundamental e não desculpa para ofensa às demais garantias individuais. Essa é a missão da Campanha Nacional Permanente contra a Tortura no Maranhão e sua construção é trabalho constante não só de todos os signatários do Protocolo de Intenções, mas de cada cidadão.

6. ANEXOS

Repressão à tortura: modelo de um fluxograma de responsabilização total

A dignidade do ser humano é a primeira vítima da tortura. As convenções internacionais e a Constituição Federal expõem a abjeção com que o Direito, como código de normas da sociedade, encara a tortura. O compromisso dos Estados-partes de tais convenções , dentre eles o Brasil, é pela erradicação da tortura, notadamente a tortura praticada por funcionários públicos , aqui referida como tortura institucional, por representar a própria negação do papel do Estado. A gravidade da tortura institucional no Maranhão, principalmente nas pequenas cidades, é demonstrada na análise da estatística constante deste relatório.

Para o alcance do compromisso de superação da tortura como prática ainda disseminada e tacitamente admitida, há que se garantir efetividade tanto no apoio às vítimas, quanto na prevenção, sem perder de vista a necessidade social de se otimizar a repressão. Nesse tópico, o comitê maranhense da campanha nacional contra a tortura construiu coletivamente um conceito de responsabilização total do autor deste crime.

O modelo construído tem como base o conceito da múltipla natureza ilícita da tortura, que é considerada nos seguintes aspectos:
a) crime (Lei n º 9.455/97);
b) ato ilícito indenizável (Código Civil, art. 927);
c) falta funcional grave;
d) ato de improbidade administrativa (Lei n º 8.429/92, art. 11); e,
e) obrigação regressiva do funcionário público torturador para com o Estado.

Tradicionalmente, a repressão à tortura é feita quanto ao aspecto criminal e indenizatório. A ação penal, de iniciativa exclusiva do Ministério Público , pode levar o torturador a uma pena de até dezesseis anos de reclusão, se da ação resulta morte. Quanto à indenização, esta pode ser deduzida judicialmente pela própria vítima, por advogado constituído ou através de Defensor Público ou, ainda, por órgão de Assistência Judiciária (Lei n º 1.060/50), bem assim, pelo próprio Ministério Público, na ação civil ex delicto ( CPP, art. 68 ), como no diagrama abaixo:

Há, entretanto, outras possibilidades de se obter maiores resultados na responsabilização do torturador, notadamente quando este for funcionário público. Contra a tortura institucional, há que se observar que além da responsabilização penal, há a possibilidade do pedido indenizatório dirigido contra o próprio torturador, como também contra o Estado, face sua responsabilidade objetiva na hipótese.

Mas, também é possível estabelecer outras possibilidades de responsabilização a partir da identificação dos demais aspectos ilícitos da tortura praticada por funcionário público. Ao Estado, processado pela vítima do torturador para a obtenção de indenização do ato ilícito praticado (Código Civil, art. 927), cabe o ajuizamento de ação regressiva contra o funcionário público autor do crime, estabelecendo assim uma punição pecuniária que tem potencial pedagógico difuso, por estabelecer para todos os agentes públicos o alto preço da aviltante prática. Daí o valor de a representação judicial do Poder Público apenado com a condenação indenizatória, a Procuradoria Geral do Estado, por exemplo, ter o compromisso de rever para os cofres públicos o valor despendido.

O torturador, na condição de funcionário público, pode ter sua conduta reprimida com as sanções administrativas próprias do estatuto de sua categoria. O processo administrativo pode ser provocado por representação da própria vítima ou por requisição do Ministério Público. As conseqüências implicam até na exoneração a bem do serviço público.

A condição de funcionário público, até aqui tratada com o conceito expresso pelo Código Penal, deve ser explorada sob a ótica da Lei de Improbidade Administrativa. À Administração, que se rege pela legalidade estrita, somente são admitidas práticas expressamente previstas em norma positiva, o que, por evidente, exclui a tortura. Logo, se sua prática se dá por funcionário público, no exercício de funções próprias de sua atividade, além da responsabilidade administrativa descrita no parágrafo anterior, tem-se como cabível, em tese, a utilização das sanções pela prática do tipo descrito pelo caput do art. 11 da Lei n º 8.429/92 (ofensa ao princípio da legalidade), com a perda do cargo público, suspensão dos direitos políticos e multa, dentre outras punições.Aqui, se pode ter a ampliação da relação dos legitimados para a busca da aplicação dessas sanções, o que reforça a possibilidade de sua aplicação. A Procuradoria Geral do Estado do Maranhão, por exemplo, através da Recomendação n º 01/2003, orienta os Procuradores do Estado a buscarem não apenas as ações regressivas, já referidas, mas também a ajuizarem as ações civis públicas por improbidade administrativa nos casos de tortura.

O diagrama da responsabilização total do torturador funcionário público tem a seguinte dinâmica:

O problema da aferição da efetividade das ações de responsabilização foi pelo comitê maranhense da campanha nacional permanente contra a tortura enfrentado com a criação da proposta de um fluxograma. Com a proposta, ressalta-se, ao mesmo tempo, a importância do serviço de denúncia por discagem direta gratuita
do SOS TORTURA (0800 775551) , indispensável instrumento de recebimento de alegações de tortura e de sistematizador de dados estatísticos sobre o tema.

O fluxograma, nos casos de tortura praticado por agente desvinculado de função pública, atende ao modelo abaixo:




Quando o agente do ilícito é funcionário público, cabem os seguintes procedimentos:
Há De se atentar que o SOS TORTURA passa a ter reforçado seu papel de ferramenta de recebimento das notícias-crime, admitido que foi previamente pelas instâncias oficiais de responsabilização através da assinatura do PROTOCOLO DE INTENÇÕES.

O passo seguinte necessário à implantação do fluxograma é a internalização de sua concepção de ação sistêmica, em rede, por parte dos operadores do sistema de segurança e justiça. As Recomendações do Ministério Público e da Procuradoria Geral do Estado são valiosas nesse sentido. Normatizações internas com o mesmo objetivo por parte dos outros órgãos oficiais de responsabilização são desejáveis.
Fonte: MP-MA

Nenhum comentário:

Postar um comentário