Publicado no Caderno Aliás, jornal Estado de SP, 20/11/2011
A retórica ufanista e o moralismo simplificador do bem contra o
mal, ainda comum na mídia, sobretudo carioca, não ajudam a entender a unidade de
fundo entre crime e polícia, cuja lógica explica o drama da insegurança no Rio
de Janeiro. O que se ganha na demagogia política dos símbolos, perde-se em
acuidade analítica.
Em 1997, dois representantes colombianos do cartel de Cali
vieram ao Rio de Janeiro para um encontro clandestino com dois empresários
atuantes no comércio de cocaína --um brasileiro, outro sul-africano. O objetivo
era avaliar as perspectivas desse ramo de negócios na cidade. Vieram estimulados
pelo reconhecimento de que o mercado dava sinais de prosperidade e seu futuro
parecia promissor, sobretudo face ao aumento do poder de consumo da classe
média, nos novos tempos de estabilização e crescimento inaugurados pelo Plano
Real. Calcularam custos e benefícios, e, finalmente, desistiram. Concluiram que
seria inviável organizar uma estrutura de distribuição economicamente racional,
em grande escala, à semelhança da rede que funcionava na Europa, abastecida por
transporte marítimo, via Inglaterra. O obstáculo no Rio era o faccionalismo dos
grupos armados, cuja irracionalidade era agravada pelo envolvimento policial.
Tudo isso gerava instabilidade e imprevisibilidade: péssimo ambiente para
investimentos. Passaram uma noite no antigo templo da prostituição turística
carioca, a boate Help, e voltaram
para casa, frustrados e exauridos --por motivos diferentes.
O episódio ilustra um aspecto frequentemente negligenciado: o
modelo de organização e operação do tráfico de drogas no Rio sempre foi
irracional e tenderia a tornar-se insustentável. É muito caro manter controle
armado e ostensivo sobre territórios e populações, dividindo lucros com
policiais. Exercer esse controle exige a organização de equipes numerosas,
disciplinadas, hierarquizadas, dispostas a assumir riscos extremos. Os
benefícios podem ser obtidos com muito menos gastos e riscos, quando se opera
com estruturas leves, adotando-se vendas por delivery ou por agentes nômades,
circulando em áreas selecionadas –como ocorre nas grandes cidades dos países
centrais.
As UPPs –ótimo programa, sem dúvida necessário--, ao sepultarem
o antigo regime, induzem, paradoxalmente, a modernização da economia do tráfico.
Não o digo para criticar o programa, vale sublinhar, mas para analisar suas
condições de possibilidade, seus efeitos e suas perspectivas futuras. Até porque
essa modernização, considerando-se a inviabilidade de extinguir o negócio das
drogas, será benéfica, reduzindo as armas em circulação e a violência, além do
despotismo a que são submetidas tantas comunidades.
O modelo tradicional do tráfico é fruto de uma história bastante
peculiar e não o resultado de um plano de negócios ou de um projeto “político”.
A geografia social da cidade já situava, nos anos 1960 e 70, enclaves de
pobreza, as favelas, no coração de zonas afluentes. O abandono das áreas pobres
por parte do Estado favorecia seu uso como depósito de mercadorias ilegais e
esconderijo para os operadores do tráfico no varejo. A contiguidade espacial
permitia que os consumidores das camadas médias fossem alcançados sem
dificuldades. Graças à aliança com segmentos policiais, a venda de drogas acabou
por estabelecer-se nas próprias favelas, em pontos de venda fixos, as
“bocas”, de conhecimento público.
Inaugurava-se, assim, uma das únicas experiências duradouras de comércio
sedentário e varejista de produtos ilícitos em zonas urbanas do mundo
industrializado. Observe-se que desde sua origem o sistema dependia, naquilo que
tinha de singular e distintivo, da participação policial.
Para garantir a continuidade dos negócios, tornou-se necessário
proteger a “boca”, assegurando o livre trânsito de mercadorias e clientes. As
armas, o recrutamento de equipes, sua organização à moda militar e o treinamento
adequado converteram-se em vantagens competitivas. A consequência inevitável foi
o controle de territórios e populações, exercido pela combinação perversa entre
a intimidação pela força e a subordinação de tipo clientelista –padrão já
incorporado à cultura local por décadas de tutela política.
Choques de interesses, disputas de poder e caprichos
histórico-biográficos ensejaram a formação de três polos agregadores e
antagônicos, em cujas órbitas passaram a gravitar os grupos de traficantes.
Ordenavam-se, portanto, as rivalidades, fortalecendo-se, simultaneamente, a
coesão interna de cada comando e as respectivas identidades. A relevância
prioritária do armamento impôs-se nesse contexto, gerando uma curiosa e nefasta
autonomização da economia das armas, cujo resultado foi a existência de mais
armas e mais poderosas do que seria necessário para o uso rotineiro. O estoque
excessivo de armas –ao instaurar uma capacidade “produtiva” ociosa-- animou o
desenvolvimento de práticas de aluguel e leasing, entre outras, em condições
baratas e acessíveis, o que terminou por universalizar o emprego da arma de
fogo, inclusive na prática de crimes menores contra o patrimônio,
tradicionalmente perpetrados sem esse recurso –convertendo-os em potenciais
crimes contra a vida e, por essa mediação, reproduzindo em escala ampliada a
espiral da violência. Lembremo-nos que o Bope, em meados da década de 1990,
deixou de aceitar rendição e fazer prisioneiros, o que também contribuiu para
que traficantes intensificassem o investimento em armas e na cooptação de
militares para a formação de seus quadros.
As histórias da crescente ingovernabilidade policial e do
tráfico articulam-se, desde a origem. Não podem ser compreendidas separadamente.
Nunca houve tráfico de armas e drogas, no Rio, dada sua natureza sedentária e
territorializada, sem ativa participação de segmentos policiais, os quais se
emancipavam do controle institucional, social e governamental, em função de
vários fatores, entre os quais o modelo policial legado pela ditadura,
refratário à governança racional, legalista e democrática.
Nesse contexto, as UPPs, retomando experiências anteriores (os
mutirões pela paz, em 1999, e os GPAEs, entre 2000 e 2002), constituem um
caminho mais do que promissor, indispensável. Elas substituem as incursões
bélicas em que morriam suspeitos, inocentes das comunidades e policiais, sem que
nada mudasse. Sua novidade: a provisão nas favelas do serviço público, que é a
segurança, 24 horas, nos moldes oferecidos aos bairros nobres, isto é, com
respeito às leis e aos direitos humanos. Nada de mais. Entretanto, decisivo, uma
vez que a presença policial constante e legalista impede o controle do
território por parte de grupos armados e permite que o Estado atue, cumprindo
seu dever nas áreas de saúde, educação, saneamento, urbanização, transporte,
etc.
Qual o desafio? Transformar o programa em política pública, ou
seja, dotá-lo de universalidade e sustentabilidade, o que exige o envolvimento
do conjunto das instituições policiais em sua aplicação. No Rio, não há esta
hipótese, tal o nível de comprometimento das polícias com o tráfico, as milícias
e a criminalidade em geral. Portanto, sem a refundação das polícias não haverá
futuro para as UPPs. Elas se limitarão a intervenções tópicas, insuficientes
para mudar o panorama geral da segurança pública e continuarão a conviver com
nichos policiais, milicianos ou não, que têm sido fonte de violência e não
instrumentos da ordem cidadã e democrática. No Rio, é preciso exorcizar a
retórica tão patética quanto mascaradora do bem contra o mal e inscrever a
mudança das polícias no centro da agenda pública.
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