http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2104200531
Numa época, as universidades particulares procuravam ansiosamente por doutores.  O fato é que, para autorizar novos  cursos, o Ministério da Educação  exige que o corpo docente inclua  pesquisadores qualificados, ou seja, doutores.
Ultimamente, as universidades  particulares descobriram que o  salário dos doutores é caro. Na  medida do possível, querem substituí-los por mestres e graduados.
Esse cálculo poderia comprometer a qualidade do ensino. Mas  não é o caso de preocupar-se: os  donos das universidades particulares não acharão os mestres e os  simples graduados necessários  para efetuar a substituição, pois,  no Brasil do começo do século 21,  só há doutores. Prudente de Moraes pode festejar: a República  dos Bacharéis se pós-graduou.
Faça a prova: ligue para advogados, psicólogos, arquitetos e outros profissionais liberais. Ouvirá:  "A doutora está em consulta",  "Vou ver se o doutor pode atender". Ligue para uma agência de  publicidade, um escritório comercial ou uma empresa e tente falar  com um dirigente (engenheiro,  arquiteto, administradora etc.). É  a mesma coisa: "O doutor está em  reunião", "Quer deixar um recado para a doutora?".
Mas, trégua de brincadeiras.  Em geral, esses profissionais não  se apresentam como doutores  num encontro com membros de  sua classe social. Eles são doutores  para suas secretárias e, graças a  elas, para quem telefona.
Algumas semanas atrás, para  assinar um contrato, fui até um  elegante escritório comercial, na  área de São Paulo (ao redor da  avenida Berrini) que se apresenta  como cartão-postal da modernização. Anunciei ao porteiro que  eu devia encontrar o senhor E.,  que estava me esperando. O porteiro, modulando a voz de modo  a acentuar a correção de minhas  palavras, perguntou: "Você quer  ver o doutor E.? E você é o senhor...?". Ele parecia treinado para produzir uma tentativa de intimidação social. Não achei graça  e retruquei: "Ah, o senhor E. é  doutor? Ele é médico ou tem doutorado em alguma outra especialidade?". O porteiro ficou atônito:  como ele deveria reagir a essa resposta imprevista?
As regras do uso legítimo do título de doutor dizem que doutores são os que completam um  doutorado e, por consideração especial, os médicos. Não sei se o  porteiro conhecia essas regras. No  entanto, graças a uma sabedoria  vital em nosso mundo, ele sabia  certamente que o título de doutor  do senhor E. não designa uma excelência acadêmica, mas serve  para significar uma distância social.
No caso, não há diferença nenhuma entre ser doutor e ser  marquês de Carabás: ambos são  títulos cujo uso vale como um gesto de submissão, como uma genuflexão. Reconhecendo que o senhor E. pertence a outra casta, o  porteiro me convidava a dar prova da mesma deferência.
Ora, a modernidade triunfa  quando a diversidade das origens, das funções sociais e das  condições econômicas não altera  o fato de que somos todos essencialmente iguais.
Na adolescência, participei da  fundação de um pequeno círculo  liberal "extremista", em que a  gente praticava o costume jacobino de chamar os outros de "cidadão" ou "cidadã" (título que era  para nós uma honra suprema),  acompanhado da função de cada  um: cidadão professor, cidadã estudante, cidadão carpinteiro. Um  pouco mais tarde, sonhei com um  mundo em que nos chamaríamos  um ao outro de "companheiro"  ou "companheira".
Isso acontecia numa outra sociedade de doutores, a Itália dos  anos 60. A sociedade italiana acabava de se tornar republicana e  vivia um conflito agudo entre a  modernização acelerada, as desigualdades econômicas violentas e  a nostalgia das antigas hierarquias. Com isso, as diferenças sociais modernas (diferenças de formação e de função) eram extraviadas e usadas como indicadores  de privilégio e de casta. "Doutor",  um título que deveria assinalar a  competência específica de um cidadão, era usado para afirmar  que ele pertencia à tribo dos abastados.
Entre parênteses: a universidade italiana, cúmplice do atraso  nacional, chamava de "doutor"  qualquer graduado.
A alusão a uma educação superior, que é contida no título "doutor", serve também para justificar  o privilégio: se alguém é doutor,  "merece" ser rico. Com isso, a  classe média, sempre ameaçada  por seu retrocesso, pode acreditar  que seu privilégio não seja arbitrário e efêmero. Explica-se assim  o mistério das reuniões de condomínio em que todos os condôminos são doutores e doutoras.
Enfim, é provável que o uso de  "doutor" como índice e justificação do privilégio social seja um  sintoma constante em todas as  sociedades em que formas arcaicas de domínio desvirtuam as formas modernas da diferença social. "Doutor", nessas sociedades,  não é médico nem pós-graduado:  é quem tem cartão de crédito,  acesso à sala VIP do aeroporto e  carro importado.
Nota. A república dos doutores  é especialmente risível hoje,  quando a hierarquia social que  parece contar é aquela produzida  pela notoriedade. Nessa hierarquia, o que importa não são os títulos, mas os nomes próprios, à  condição que sejam reconhecíveis. Você acha que Giorgio Armani e Paulo Coelho querem ser  chamados de dr. Armani e dr.  Coelho?
 
 
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