segunda-feira, 19 de novembro de 2012

'O silêncio era o maior aliado de Kadafi', afirma jornalista

http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/o-silencio-era-o-maior-aliado-de-kadafi-diz-jornalista

 

Em um livro prestes a ser lançado na Líbia, a francesa Annick Cojean detalha os crimes sexuais cometidos pelo tirano, obcecado por sexo. Ao site de VEJA, ela conta os desafios das mulheres em meio aos tabus da sociedade ainda arcaica

Cecília Araújo
Ex-ditador da Líbia Muamar Kadafi rodeado por suas guarda-costas durante reunião de países árabes em Trípoli no ano de 2010
Ex-ditador da Líbia Muamar Kadafi rodeado por suas guarda-costas durante reunião de países árabes em Trípoli no ano de 2010 (AFP)
"Quando uma mulher fala que foi estuprada, sua família é desonrada. Mas quando milhares de mulheres são violadas, a ofensa se espalha a todo o país", diz Annick
O ex-ditador líbio Muamar Kadafi, deposto e linchado pelos seus opositores em outubro de 2011, poderia ser definido em uma única palavra: megalomaníaco. Atribuía enorme importância à sua imagem, se vestia de modo bastante peculiar e fazia questão de transformar suas aparições públicas em extravagantes encenações. Nascido em uma família muito pobre de beduínos, Kadafi trazia de volta suas raízes ao acampar em luxuosas tendas durante viagens a outros países ou ao receber personalidades na Líbia. Queria se mostrar autêntico, e não suportava concorrência ou comparação. Ele impedia que de seu país sobressaísse algum nome que não o seu - até os jogadores de futebol só podiam ser citados pelo número da camisa. Dentro do seu plano de intrigar o mundo estava se apresentar como único chefe de estado a se cercar de uma guarda inteiramente feminina. E ali ele escondia seu maior segredo: além de megalomaníaco, também era obcecado por sexo. Suas “amazonas”, como eram chamadas, destacavam-se pela beleza - a maioria não tinha qualquer formação militar nem sequer portava armas. Muitas eram, na verdade, amantes e objetos sexuais de Kadafi, segundo o livro “O Harém de Kadafi” (Verus Editora), da francesa Annick Cojean, publicado recentemente no Brasil.
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“O estupro, considerado na Líbia o pior dos crimes, era prática corrente da ditadura e foi decretado arma política e de guerra”, diz a jornalista, que falou ao site de VEJA durante uma breve passagem pelo Brasil, nesta semana. E o responsável por isso era exatamente Kadafi, aquele que pregava a igualdade de gêneros ao longo dos 42 anos em que se manteve no poder. Em seu livro, Annick apresenta relatos detalhados de vítimas do ditador. Uma das personagens reais (porém, com nome trocado, para garantir sua segurança) é Soraya, hoje com 23 anos. Antes de completar 15 anos, ela chamou a atenção de Kadafi em uma visita à sua escola. Acabou raptada para se tornar escrava sexual. Presa durante cinco anos na residência fortificada de Bab al-Azizia, na capital Trípoli, Soraya foi espancada, violentada, exposta a todas as perversões do tirano. Em seu relato, a jovem diz que preferiria que Kadafi tivesse sido capturado e julgado por um tribunal internacional, que prestasse contas. “Kadafi lhe roubou a virgindade e a juventude, impossibilitando qualquer futuro respeitável na sociedade líbia”, conta Annick.
Divulgação
Capa do livro 'O Harém de Kadafi'
Capa do livro 'O Harém de Kadafi'
Ao saber do tema de seu livro, a maior parte dos líbios procurados pela jornalista tentava convencê-la de abandonar as pesquisas, se não quisesse se tornar alvo de ameaças e intimidações. Agora que o livro está pronto, a autora espera que as histórias contadas pelo menos impeçam que o tabu do estupro e os traumas das mulheres sejam enterrados junto com o ditador. A obra acaba de ser traduzida para o árabe, e em alguns dias deverá ser publicada na Líbia. “Espero que provoque debate no governo, na justiça e na sociedade, agora livres, para que possam buscar culpados e tentar entender como funcionava o sistema durante a ditadura de Kadafi”. Abaixo, a entrevista na íntegra:

No livro, a senhora fala das dificuldades de se conseguir relatos de mulheres vítimas de Kadafi, mesmo depois da morte do ditador. Soraya parece ter sido um grande achado. É verdade. Quando encontrei Soraya pela primeira vez, ela estava em cólera, ainda sob o choque da morte de Kadafi. Ele lhe havia roubado a virgindade e a juventude, impossibilitando qualquer futuro respeitável na sociedade líbia. E, de repente, ela descobriu que, apesar de se sentir vítima do antigo regime, poderia acabar sendo considerada culpada. E isso era insuportável para ela. Por isso, queria descarregar sua raiva e sua revolta.

E as outras mulheres, que aceitaram dar um testemunho mais breve de seu passado, demoraram a querer falar? Elas não queriam falar comigo de jeito nenhum, terrificadas com a possibilidade de alguém descobrir o seu segredo. Foi muito difícil convencê-las a falar, mesmo garantindo o anonimato. Elas tinham medo que eu desse detalhes que poderiam levar os leitores a reconhecê-las. Aquelas que aceitaram falar pediram para que eu me esquecesse delas depois desse único encontro e afirmaram que nunca mais queriam falar de sua história novamente. Muitas me disseram que, se eu publicasse algo que levasse seu marido ou seus filhos a reconhecerem-nas no livro, elas se matariam. E eu realmente acredito que não era força de expressão.

O tabu do estupro continua assim tão forte na Líbia? Sim. O estupro - até mesmo o sexo em si - ainda é um assunto extremamente pesado e um verdadeiro tabu na Líbia. É quase impossível abordar as pessoas e fazê-las falar sobre isso. É uma sociedade muito religiosa e conservadora, em que as mulheres e homens estuprados guardam suas angústias para si, a fim de proteger sua família da vergonha. Para reparar tal desonra na Líbia, seria preciso matar o estuprador e a pessoa violada. Isso explica por que a maior parte das vítimas não conta nada nem para a própria família. Elas vivem com o segredo e têm muito medo de que alguém o descubra. Soraya mesmo não contou detalhes à sua família, não valeria a pena.

A família de Soraya não desconfiou desde o início do que se tratava trabalhar para Kadafi? No início, eles não viam com essa clareza. Mas quando sua mãe foi visitá-la na residência de Bab al-Azizia, tudo ficou transparente. Claro que havia rumores sobre garotas que desapareciam repentinamente na Líbia, mas acredito que os líbios não tinham noção do que se passava lá dentro, a não ser que tivessem uma relação próxima com os membros do regime. A verdade é que era difícil descobrir o que as pessoas de fato sabiam sobre os crimes sexuais de Kadafi. Ninguém falava sobre isso ou dava explicações em nenhuma circunstância, pois viviam numa verdadeira ditadura. As pessoas vigiavam seus próprios vizinhos. O pai de Soraya, angustiado com a sorte de sua filha, não ousava ir à polícia, que era corrupta e estava às ordens do regime. Eles acabariam todos na prisão.

E esse silêncio acabava perpetuando a ditadura. Exato. O estupro, considerado na Líbia o pior dos crimes, era prática corrente na ditadura e foi decretado arma política e de guerra. Kadafi se aproveitou do fato de a Líbia ter uma sociedade tão conservadora. O silêncio era o seu melhor aliado, assim como o tabu do estupro. Ele fazia algo sobre o qual ninguém ousava comentar. As vítimas, envergonhadas e desonradas, acabavam se submetendo ao seu controle.
Tina Merandon / Divulgação
A francesa Annick Cojean, autora do livro 'O Harém de Kadafi'
A jornalista francesa Annick Cojean
Agora, com a publicação do seu livro, o que deve mudar? Optei por dar lugar a um relato mais longo e detalhado de Soraya, além de outros testemunhos menores, porque acho que sua história é um documento único, que pode servir para que uma investigação seja aberta no Tribunal Penal Internacional. Nenhuma outra mulher ousou dar os detalhes que ela deu até hoje. E Soraya representa a voz de centenas ou milhares de jovens mulheres que foram estupradas por Kadafi e nunca tiveram ou terão coragem de falar. Quando uma mulher fala que foi estuprada, sua família é desonrada. Mas quando milhares de mulheres são violadas, a ofensa se espalha a todo o país. Espero que o livro faça com que os colaboradores do regime sejam investigados. Mabruka, por exemplo, citada no livro como algoz do regime de Kadafi e cujo nome é real, esteve desde a morte do ditador vivendo normalmente no sul da Líbia, em sua residência, a única restrição era que não podia deixar o país. Porém, na semana passada, me foi dito que ela tentou fugir para a Argélia, temendo a repercussão do livro, que tem acusações terríveis sobre essa mulher e outras. Certamente, a obra vai ter implicações para elas.

A senhora acha que o livro vai chegar até as autoridades líbias? A obra acaba de ser traduzida para o árabe, e em alguns dias será publicada na Líbia. Além disso, pretendo enviar o texto em um pen drive, gratuitamente, para vários líbios, especialmente aqueles que fazem parte do novo governo: ministros, parlamentares, organizações de direitos humanos, associações de mulheres. Quero que todos leiam o livro e espero que ele provoque debate no governo, na justiça e na sociedade, agora livres, para que possam buscar culpados e tentar entender como funcionava o sistema durante a ditadura de Kadafi. Já houve tentativas frustradas de investigar a verdade sobre seus crimes políticos ao longo dos 42 anos que esteve no poder, mas o tabu continua, e ninguém quer testemunhar. O livro talvez não libere a voz dessas pessoas, mas vai impedir que o problema seja enterrado junto com Kadafi. Não será possível fingir que nada disso aconteceu. O mundo todo vai saber.

As mulheres na Líbia estão otimistas com a transição para a democracia? No geral, sim, embora ainda seja um momento de espera. As revoluções árabes não têm sido muito favoráveis às mulheres na Tunísia ou no Egito. Na Líbia, os religiosos também estão no poder, mas as mulheres mantêm a cabeça erguida, são muito fortes. Elas tiveram um papel importante durante os protestos, foram a arma secreta da revolução. Captaram dinheiro para compra de armas, espionaram as forças kadafistas em auxílio à Otan, desviaram toneladas de medicamentos. Agora que Kadafi está morto, elas estão ansiosas por sua liberação. Elas são educadas, se organizam, fundaram associações. Embora não tenham cargos tão importantes ou uma voz sobressalente, são a estrutura da sociedade líbia, as principais personagens neste momento de reconciliação. É a hora de elas ousarem e mostrarem sua ambição.

O Conselho Nacional de Transição tem mostrado sinais de apoio às mulheres? Até agora foram poucos, mas acredito que o novo governo e o novo Congresso Nacional vão mostrar mais atenção e respeito a elas. Durante minhas investigações, procurei Mustafá Abdel Jalil, chefe de governo no início da transição, e ele não quis responder às minhas perguntas, dizendo que seria melhor para mim parar com as investigações imediatamente. Mas também conheci o atual primeiro-ministro líbio, Ali Zidane, antes de assumir o cargo. Ele me pareceu um homem muito aberto e a favor de que a verdade seja dita. E sei que ele tem meu livro em mãos.

Mas deve levar um tempo para que transformações de fato sejam vistas no país. Sem dúvidas. Por se tratar de uma sociedade extremamente arcaica e patriarcal, é impossível que a mentalidade mude de um dia para o outro. Vai demorar alguns anos. As mulheres nunca puderam se mostrar, e aquelas que sobressaem ou têm muita ambição ainda são mal vistas. Isso está incrustrado na sociedade. O primeiro discurso dos rebeldes, depois da morte de Kadafi, é exemplo disso. Foi decepcionante. Não havia uma só mulher que representasse a transição ou qualquer uma menção positiva às mulheres. Um dos anúncios da revolução foi o de restabelecer a poligamia no país. Um absurdo. Mas não há como ser pior do que a era Kadafi. Os tempos de barbárie acabaram. E as mulheres, unidas, serão mais combativas.

A senhora ainda mantém contato com Soraya? Sim. Ela está menos otimista do que as mulheres comuns, pois ainda está completamente traumatizada. Aos 23 anos, ela não consegue imaginar seu futuro, nem os próximos meses. Agora, ela ainda se esconde, se desligou de sua família, tem medo de seu irmão. Também não sabe manter relações sociais, como ganhar a vida. Há muitas coisas que ela deve aprender. Acho que foi importante para ela falar comigo, ter alguém que pudesse escutá-la. Mas ela ainda não consegue imaginar como viver depois de ter passado por tudo isso.

Também não deve ter sido fácil para a senhora. Foi o inverno mais difícil para minha vida profissional, ainda mais porque precisava trabalhar secretamente, solitária. Ninguém podia saber sobre o que eu fazia, quem eu visitava, com quem eu conversava. E as mulheres choravam muito ao contar suas histórias, claramente sentiam que arriscavam sua vida ali, me dando informações que nunca tiveram coragem de contar a mais ninguém. Foi doloroso, o clima era muito opressor. Ao terminar o livro, sentia que precisava de ar. Mas acredito que tudo vai valer a pena quando a voz de Soraya for ouvida e quando a justiça for feita - não só na Líbia, mas em outros lugares do mundo onde crimes sexuais são acobertados pelas vítimas e tolerados pela sociedade.
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