06/03/2012 - Revista VejaJornalista: Felipe Vilicic
O veneno no dia a dia
Houve um tempo em que se bebia veneno acreditando tratar-se de um remédio para todos os males. A substância letal em questão era o arsénico. Desde o início do século XX, o perigo do arsénico é amplamente conhecido. Pequenas doses causam sonolência, dores de cabeça, diarreia e confusão mental. Já em dosagens maiores, o efeito é fatal: sangramentos e convulsões que levam à morte. Entre os séculos X VIII e XIX, porém, o arsénico, em pequenas quantidades, era tido como benéfico. Os médicos o usavam para tentar curar diversas moléstias, principalmente as causadas por bactérias. Não existiam antibióticos e os médicos apostavam em toda sorte de substâncias no combate às doenças. O arsénico era a solução preferida. Uma pesquisa de campo feita pela escritora e jornalista inglesa Lindsay Ashford. que inspirou seu último livro, mostra que o arsénico pode ser a resposta para um enigma que perdura há quase 200 anos: o que terá matado Jane Austen, uma das mais conhecidas escritoras da literatura inglesa, autora de clássicos como Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade?
Até hoje, acreditava-se que Jane Austen. morta em 1817, fora vítima de
BOM PARA TUDO
Jane Austen (à esq.): o arsénico teria sido receitado contra reumatismo. Cartazes, como este à direita, apregoavam que a substância "garante uma palidez saudável à pele" tidade exata de arsénico que havia em seu corpo quando morreu.
TOXINA EM AÇÃO
Autorrerrato de Van Gogh: a loucura do pintor se deveria à exposição ao arsénico presente na tinta verde
uma doença grave. Eram três as opções: Addison. uma insuficiência suprarrenal que provoca a destruição gradativa do sistema imunológico. câncer ou tuberculose. Lindsay deparou com uma nova evidência que pode indicar que Jane não foi mona por uma doença. Ela teria sido envenenada, propositalmente ou por acidente, com arsénico. É possível I que a substância lhe tenha sido receitada por seu médico contra o reumatismo. Para chegar a essas conclusões, Lindsay, especialista em romances criminais, morou durante três anos na vila inglesa de Chawton. onde Jane viveu com a irmã e com a mãe. Durante esse período, debruçou-se sobre todos os detalhes da vida e da morte da escritora para escrever The Myste-ríous Dearh of Miss Austen (A Misteriosa Morte de Miss Austen), ainda inédito no Brasil.
Disse Lindsay Ashford a VEJA: "Em uma das cartas que Jane Austen trocou com uma sobrinha, descobri que ela apresentava sintomas de envenenamento por arsénico. Relatava alterações na cor da pele. Associei a isso os testes químicos encomendados por dois colecio-nadores que tinham fios de cabelo de Jane e que apontaram a presença em excesso da toxina no corpo dela". O achado de Lindsay estimulou novos testes em cabelos da escritora inglesa. Os resultados prometem mostrar qual a quan
No livro! The Arsenic Century (O Século do Arsénico, inédito no Brasil), o químico americano James Whorton desfila uma série de exemplos da popularidade do arsénico na Europa dos tempos de Jane Austen. O arsénico era a base de tintas, principalmente de uma conhecida como "verde de Paris", popular entre pintores impressionistas. Há teorias que culpam o arsénico pelo desequilíbrio mental do pintor holandês Vincent van Gogh. que ikialava a substância durante seu trabalho e chegou a decepar a própria orelha inum acesso de loucura. O naturalista Charles Darwin e o rei George III, da Inglaterra, também teriam tido a saúde abalada pelo contato com a substância. Disse Whorton a VEJA: "O arsénico também estava em papéis de parede e era usado como veneno contra ratos, que se espalhavam pelas casas de Londres. Por ser incolor e não ter cheiro marcante, o veneno era acidentalmente misturado com o sal na cozinha e acabava ingerido pelas pessoas". Para completar. as mulheres achavam que doses de arsénico ajudavam a emagrecer e tinham o hábito de passar uma solução dele na pele. para deixá-la mais branca, à moda da época. A pele realmente ficava branca, mas também manchada e suscetível ao câncer.
É comum enxergar o século XIX com certa aura romanceada, pelas conquistas que o período trouxe. Os próprios livros de Jane Austen incentivam essa visão, ao expor as relações pessoais dos que viveram naquele tempo. Não se pode esquecer que. no mundo real, a vida era difícil. Na Inglaterra vitoriana, então o centro do mundo, a sífilis ceifava milhares de vidas e não havia penicilina ? descoberta apenas em 1928 ? para combatêr as infecções. Os trabalhadores eram expostos a jornadas de trabalho escorchantes. As condições sanitárias eram péssimas, o que favorecia toda sorte de doenças. Eram comuns os esgotos a céu aberto. Esse foi o cenário que promoveu o arsénico à condição de panaceia universal. ?
Jornalista: Felipe Vilicic
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