quarta-feira, 3 de abril de 2013

A Rússia autoritária e racista de Putin

Mario Vargas Llosa - O Estadao de S.Paulo

É difícil imaginar uma história moderna mais triste do que a da Rússia, país que deu ao mundo, no último século e meio, essa extraordinária leva de pensadores, escritores, compositores, artistas, poetas, utopistas e místicos, magistralmente descrita nos ensaios de Isaías Berlin. Depois de padecer por mais de 70 anos sob uma das mais infames ditaduras de que se tem conhecimento na história, em que muitos milhões de cidadãos inocentes pereceram no Gulag siberiano por causa da mera paranóia dos donos do Kremlin, o povo russo viu o colapso da União Soviética.



No lugar da liberdade surgiu o caos, a anarquia econômica e política, o que ajudou os ex-comissários comunistas a praticar desenfreadas bandalheiras - privatizando, a seu favor, as indústrias estatais e permitindo que as máfias saqueassem o país. Elas levaram para paraísos fiscais mundo afora bilhões em divisas obtidas com dificuldade e roubadas do povo russo - que viu seu precário nível de vida cair ainda mais.



Não é de estranhar que Vladimir Putin - um ex-agente da KGB, o mais sinistro organismo do antigo regime -, ao assumir a presidência, fizesse da ordem e do respeito à autoridade a coluna vertebral de sua política. Era o que seus compatriotas mais desejavam, num país em que a ilegalidade reinava e delinqüentes e pistoleiros agiam em completa impunidade.



De fato, Putin estabeleceu a ordem, freou a criminalidade e restaurou uma tradição de verticalismo autoritário que, com máscaras ideológicas distintas, teve na Rússia uma certa continuidade - com alguns poucos e fugazes intervalos de abertura - desde Ivan, o Terrível, até os dias atuais.



O povo russo - que, ao longo da sua história, praticamente não conheceu outra cultura senão o despotismo - sente-se mais tranqüilo, ou pelo menos aliviado e com esperanças na Rússia de Putin.



A popularidade do presidente continua enorme e tudo indica que, mesmo que não se candidate nas próximas eleições, como disse, ele - em pessoa ou por meio de intermediários - continuará conduzindo os destinos do país.



As corajosas minorias que, mesmo sob repressão crescente, batalham pela democracia e os direitos humanos, esforçando-se para que o restante do mundo tome conhecimento das arbitrariedades cotidianas contra a liberdade e a lei praticadas pelo regime, estão cada vez mais encurraladas: censura, perseguições, represálias econômicas, processos penais e, em casos extremos, assassinatos. E tudo indica que esse estado de coisas só vai piorar num futuro imediato.



No exterior são conhecidas as grandes linhas da política seguida por Putin e a bajulação de ex-agentes da KGB e dos apparatchiks dos quais ele se cercou para restabelecer o poder autoritário. E, sobretudo, a estatização ou neutralização de boa parte dos meios de comunicação independentes, agora a serviço do governo, e a reestatização dos principais órgãos responsáveis pelo setor de energia e dos chamados ''''setores estratégicos'''', devolvendo assim para o Estado a ingerência hegemônica na vida econômica do país.



É verdade que um setor industrial ficou fora da tutela estatal, mas na condição de total submissão às ordens do poder. As enormes reservas de gás e petróleo do país e os altíssimos preços alcançados por essas commodities nos mercados mundiais deram ao governo russo um instrumento para multiplicar sua influência internacional, coagir seus vizinhos, reiniciar uma corrida armamentista que entusiasma as Forças Armadas - que recuperaram sua antiga condição de instituição privilegiada dentro do sistema - e fazer gravitar sobre a Europa Ocidental uma Espada de Dâmocles: a ameaça de reduzir ou cortar o abastecimento de gás e petróleo, do qual o continente depende, caso apóie políticas consideradas pela Rússia como lesivas para sua segurança.



RACISMO



No entanto, é menos conhecido um aspecto ainda mais sombrio e violento da política de Putin: o nacionalismo que ele promove para criar a ilusão de uma unidade nacional patriótica contra os inimigos internos e externos, e as inevitáveis seqüelas de semelhante ideologia: o racismo e a xenofobia.



Para aqueles que quiserem saber um pouco mais a respeito, recomendo ler dois excelentes artigos publicados em 21 de agosto no International Herald Tribune. Os autores, Jeff Mankoff e Paul Kennedy, ambos da prestigiada Yale University, não só sabem muito bem do que falam, como também estão muito longe de sentir a mínima aversão pela Rússia. Pelo contrário, seus artigos exalam uma visível solidariedade para com o povo russo por causa de seus infortúnios.



Jeff Mankoff ilustra com uma pequena lista de exemplos a sua tese de que o ''''racismo violento'''' que hoje impera na sociedade russa só deve crescer diante da maneira como o Estado utiliza a xenofobia - o ódio ao estrangeiro - para atingir os seus objetivos.



Bandos de ''''cabeças-raspadas'''' assassinaram uma menina originária do Tajiquistão, ferindo gravemente sua família em São Petersburgo, e esfaquearam um vietnamita. Um grupo de nazistas apunhalou oito pessoas em uma das sinagogas de Moscou. Dias atrás, um vídeo que deu a volta ao mundo mostrava como dois russos, com suásticas, executaram um homem do Tajiquistão e outro do Cáucaso, atirando contra o primeiro e decapitando o segundo. Os dois criminosos foram capturados, mas receberam sentenças leves, que não reconheceram a natureza racista do delito.



Mankoff descreve também a maneira como Putin tem utilizado dois partidos abertamente racistas que atuam na Rússia - o Democrata Liberal, de Vladimir Jirinovski, e o Rodina, de Dimitri Rogozin -, estimulando e financiando essas agremiações, e facilitando sua expansão para criar a ficção de que o partido no governo é um partido moderado, servindo de contrapeso a esses extremistas.



O resultado dessa política é que o racismo contra os chamados ''''chernie'''', ou ''''pretos'''' - que são os imigrantes de ex-repúblicas soviéticas, na maioria muçulmanos -, desfruta hoje de uma espécie de legitimidade na vida pública. Assim, não se viu nenhum protesto quando, em abril, o governo baixou um decreto claramente racista, proibindo todos os imigrantes vindos do Cáucaso de trabalhar no comércio de tecidos na Rússia.



O historiador Paul Kennedy, por seu lado, vê com justificado alarme o plano de doutrinamento ideológico que o governo russo realiza entre os jovens, seguindo um modelo muito similar ao soviético - só que, no caso presente, as idéias que o Estado procura incutir nas novas gerações, por meio da educação, não são as do marxismo-leninismo, mas de uma ''''russofilia'''' crua e pura, ou seja, o nacionalismo mais extremo e despropositado, para o qual todo estrangeiro é detestável, sejam ''''americanos imperialistas, terroristas chechenos ou estonianos ingratos''''.



O governo de Putin criou um movimento juvenil chamado Nashi (Nosso), que vem crescendo rapidamente, encorajado pelas instituições estatais cuja base ideológica é a defesa da Mãe Pátria, das tradições russas e do matrimônio, além da rejeição do forasteiro ou estrangeiro. O movimento já conta com dezenas de milhares de ativistas que, na prática, funcionam como tropa de choque em defesa de Putin e de seu governo contra seus críticos.



São os militantes desse movimento que vêm cercando, aos gritos de lemas hostis, as Embaixadas da Grã-Bretanha e da Estônia em Moscou, por causa das disputas entre a Rússia e os dois países. E, segundo o jornal britânico Financial Times, cerca de 60 mil membros do Nashi foram treinados como ''''monitores'''' nos processos eleitorais.



TEXTOS ESCOLARES



Paul Kennedy analisa também alguns dos textos obrigatórios impostos às escolas pelo governo, distorcendo a história recente para acomodá-la às necessidades do regime. Nesses textos, por exemplo, ensina-se aos jovens que ''''entrar no clube dos países democráticos implica submeter a soberania nacional aos Estados Unidos''''.



Será que Putin conseguirá o que deseja, criando estruturas mais ou menos sólidas que garantam uma considerável longevidade para o novo despotismo que ele preside? A longo prazo, provavelmente não. Isso porque, se existe alguma coisa que a experiência contemporânea nos ensinou, é que os impérios totalitários, não importa quão fortes pareçam, têm sempre pés de barro e acabam desabando, destruídos por sua própria ineficiência e corrupção.



Mas, a curto prazo, parece difícil que algo ou alguém consiga impor limites ao astuto ex-agente da KGB, que soube conquistar o apoio de boa parte dos russos substituindo a desordem, a insegurança e o desespero em que viviam pela segurança e pelo orgulho patriótico, mesmo que, para isso, tivessem de sacrificar a liberdade que poderiam ter e a democracia da qual apenas vislumbraram os riscos e as incertezas quando a tiveram nas mãos e não souberam o que fazer com ela.



A conclusão mais óbvia: para criar raízes e prosperar, a democracia precisa de uma base institucional mínima, como a que existia na Polônia, na Hungria ou na República Checa quando o império soviético desmoronou. Por isso, nesses países , a democracia conseguiu sobreviver à desordem da transição.



Na Rússia essa base não existia e, portanto, como aconteceu em tantos países africanos e latino-americanos, a liberdade acabou convertida em libertinagem e, mais cedo do que tarde, desintegrou-se, para que a barbárie ditatorial ressuscitasse. Pobre Rússia.



TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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