Segunda Leitura
A proteção jurídica dos indigentes no Brasil
Julho, férias em Santos. Temperatura fria, céu azul, navios entrando e saindo pelo canal. A cidade, economicamente aquecida pela exploração do petróleo na zona marítima, exibe comércio pujante, alavancado pela vinda de turistas. No entanto, convivendo com crianças que alegremente aproveitam o espaço dos jardins que acompanham a orla marítima e aqueles que utilizam o calçadão para caminhadas, encontram-se indigentes. Muitos.
Vestidos em andrajos, movimentam-se silenciosamente e dormem sob as marquises, envoltos em papéis ou velhas cobertas. As pessoas passam indiferentes, não lhes dirigem o olhar. Uns sentem medo, outros repulsa. Seres cuja existência se nega, ainda que implicitamente. Muitos não têm documentos. Para a economia, nada representam. Estão fora do raio de propaganda que a todos promete a felicidade. Sobrevivem de troca de bens ou de pequenas compras e vendas.
Ponho-me a pensar no que se faz ou se poderia fazer por eles. Quantos são? Estão aumentando? Existe política pública que deles trate? Leis? Será a sociedade omissa? Serei eu um tácito conivente?
Afinal, ali e em todas as cidades médias ou grandes, estão brasileiros à margem da sociedade, vidas paralelas às nossas. Prova materializada, corporal, da ofensa ao princípio da dignidade humana previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição.
Mas quem são eles?
Aproximo-me de dois e peço licença para conversar. Confesso que o faço com certo receio. Deitados, eles sentam-se. São novos, demonstram educação. Explico meu objetivo e eles passam a responder minhas perguntas. Um, Reinaldo, tem 30 anos, veio da capital. Vive na rua por causa da droga. O outro, Renato, 22 anos, veio de um município da região metropolitana de São Paulo, usuário de drogas, optou por viver na rua para não magoar sua mãe, abandonada pelo pai alcoólatra.
Sem revolta ou agressividade, narram que gostariam de mudar de vida e que aguardam vaga para tratamento em uma instituição pública do município. Sobrevivem com facilidade, guardando carros, vendendo latas de cerveja ou pedindo esmolas. Almoçam por R$ 1,00 em local subsidiado pelo poder público, usam o banheiro dos postos existentes na praia, o chuveiros dos jardins, eventualmente são ajudados por pessoas de ONGs. Os Postos de Saúde prestam-lhes assistência médica. Querem mudar de vida, mas relatam que muitos têm a intenção de permanecer nesta rotina, que chamam de “círculo vicioso”, que inclui álcool e drogas.
Pesquiso na internet o que o Poder Público vem fazendo a respeito. O marco regulatório é quase inexistente. No artigo 6º, a Constituição afirma que a assistência aos desamparados é um direito social. O Código Civil não os inclui entre os incapazes (art. 4º). A Lei Federal 10.016/2001 protege os portadores de transtornos mentais e pode alcançar uma parte dos indigentes. A Lei 8.742/93 cuida da organização da assistência social e oferece amparo aos portadores de deficiência e aos idosos, através do pagamento de um salário-mínimo mensal.
No âmbito estadual não há praticamente nada. É que o problema atinge mais diretamente os municípios. Nestes, não se acham leis específicas, ficando as previsões de assistência dentro das leis orgânicas. Por vezes, encontram-se menções pontuais, como a do artigo 182 da LC 7/81 de Foz do Iguaçu, que assegura o sepultamento gratuito dos indigentes, o que não chega a ser uma dádiva.
Se o marco legal é frágil e não específico, no âmbito de políticas públicas não há muita diferença. Em 2004, o governo federal lançou a Política Nacional de Assistência Social, todavia não se trata de lei. Há estudos, inclusive sustentando a queda da indigência (clique aqui para ler). Mas tenho dúvidas a respeito. O que tenho visto nas mais diversas cidades brasileiras é o oposto.
Nem Santa Catarina, estado mais equilibrado socialmente, escapa do problema. Revela-se em site que no município de Tijucas o centro odontológico transformou-se em moradia de indigentes.
Bem, diante destas considerações de ordem sociológica, resta perguntar: o que nós, profissionais do Direito, podemos fazer? A resposta abre espaço a três opções: a) Ignorar o problema, olhar para o outro lado; b) Atribuir a culpa ao Poder Público; c) Atribuir responsabilidade aos próprios indigentes.
Nenhuma resolve. Aliás, solucionar é algo que deve será perseguido, mas que, como uma miragem no deserto, estará sempre distante. Porém, alguns princípios podem ser, pelo menos, discutidos.
O primeiro é que somos também responsáveis. O dever ético de solidariedade impõe-nos participar, individualmente ou através de ONGs, na medida de nossas possibilidades, tentando minorar o problema. Como?
a) Poder Legislativo: editando lei que aborde especificamente a matéria;
b) Poder Executivo: dando, em todos os níveis, maior atenção ao tema. Daí a relevância da ação dos estados, pois os municípios temem dar condições melhores e atrair mais indigentes.
c) Poder Judiciário: Atuar no sentido de investigar se possuem algum direito previsto em lei. A Justiça Federal poderia promover um mutirão junto a esses excluídos, a partir de um centro de triagem, para a análise de eventuais detentores de benefícios sociais (LOAS) ou previdenciários. A Justiça Estadual examinando casos de interdição e assemelhados. A OAB pode ser uma parceira importante, através de serviço voluntário de advogados e estagiários. Idem o MP e as Defensorias, onde estiverem estruturadas. Óbvio que isto não é fácil, porque poucos se disporão a trabalhar com pessoas mal apresentadas e por vezes com mau cheiro. Mas não é possível que a relação dos indigentes com a Justiça ocorra somente quando acusados de vadiagem.
Não se está aqui, ingenuamente, querendo dar solução definitiva a um problema que, sabidamente, é dificílimo. Por vezes, nem os indigentes querem a mudança. Em outras, podem estar dominados pelo vício, com recuperação quase impossível. Mas é preciso tentar. Como se diz na canção “Impossible dream”, do filme “O homem de La Mancha”: “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível...”
Em suma, é preciso ver em cada morador de rua um ser humano, uma esperança. Saber que entre eles há atitudes de dignidade, como a do indigente Jesús Silva Santos, que no dia 9 p.p., em São Paulo, encontrou U$ 10.000 dentro de uma bolsa e os entregou à Polícia, dizendo que sua mãe o ensinou a não roubar.
Fonte:Conjur
Vestidos em andrajos, movimentam-se silenciosamente e dormem sob as marquises, envoltos em papéis ou velhas cobertas. As pessoas passam indiferentes, não lhes dirigem o olhar. Uns sentem medo, outros repulsa. Seres cuja existência se nega, ainda que implicitamente. Muitos não têm documentos. Para a economia, nada representam. Estão fora do raio de propaganda que a todos promete a felicidade. Sobrevivem de troca de bens ou de pequenas compras e vendas.
Ponho-me a pensar no que se faz ou se poderia fazer por eles. Quantos são? Estão aumentando? Existe política pública que deles trate? Leis? Será a sociedade omissa? Serei eu um tácito conivente?
Afinal, ali e em todas as cidades médias ou grandes, estão brasileiros à margem da sociedade, vidas paralelas às nossas. Prova materializada, corporal, da ofensa ao princípio da dignidade humana previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição.
Mas quem são eles?
Aproximo-me de dois e peço licença para conversar. Confesso que o faço com certo receio. Deitados, eles sentam-se. São novos, demonstram educação. Explico meu objetivo e eles passam a responder minhas perguntas. Um, Reinaldo, tem 30 anos, veio da capital. Vive na rua por causa da droga. O outro, Renato, 22 anos, veio de um município da região metropolitana de São Paulo, usuário de drogas, optou por viver na rua para não magoar sua mãe, abandonada pelo pai alcoólatra.
Sem revolta ou agressividade, narram que gostariam de mudar de vida e que aguardam vaga para tratamento em uma instituição pública do município. Sobrevivem com facilidade, guardando carros, vendendo latas de cerveja ou pedindo esmolas. Almoçam por R$ 1,00 em local subsidiado pelo poder público, usam o banheiro dos postos existentes na praia, o chuveiros dos jardins, eventualmente são ajudados por pessoas de ONGs. Os Postos de Saúde prestam-lhes assistência médica. Querem mudar de vida, mas relatam que muitos têm a intenção de permanecer nesta rotina, que chamam de “círculo vicioso”, que inclui álcool e drogas.
Pesquiso na internet o que o Poder Público vem fazendo a respeito. O marco regulatório é quase inexistente. No artigo 6º, a Constituição afirma que a assistência aos desamparados é um direito social. O Código Civil não os inclui entre os incapazes (art. 4º). A Lei Federal 10.016/2001 protege os portadores de transtornos mentais e pode alcançar uma parte dos indigentes. A Lei 8.742/93 cuida da organização da assistência social e oferece amparo aos portadores de deficiência e aos idosos, através do pagamento de um salário-mínimo mensal.
No âmbito estadual não há praticamente nada. É que o problema atinge mais diretamente os municípios. Nestes, não se acham leis específicas, ficando as previsões de assistência dentro das leis orgânicas. Por vezes, encontram-se menções pontuais, como a do artigo 182 da LC 7/81 de Foz do Iguaçu, que assegura o sepultamento gratuito dos indigentes, o que não chega a ser uma dádiva.
Se o marco legal é frágil e não específico, no âmbito de políticas públicas não há muita diferença. Em 2004, o governo federal lançou a Política Nacional de Assistência Social, todavia não se trata de lei. Há estudos, inclusive sustentando a queda da indigência (clique aqui para ler). Mas tenho dúvidas a respeito. O que tenho visto nas mais diversas cidades brasileiras é o oposto.
Nem Santa Catarina, estado mais equilibrado socialmente, escapa do problema. Revela-se em site que no município de Tijucas o centro odontológico transformou-se em moradia de indigentes.
Bem, diante destas considerações de ordem sociológica, resta perguntar: o que nós, profissionais do Direito, podemos fazer? A resposta abre espaço a três opções: a) Ignorar o problema, olhar para o outro lado; b) Atribuir a culpa ao Poder Público; c) Atribuir responsabilidade aos próprios indigentes.
Nenhuma resolve. Aliás, solucionar é algo que deve será perseguido, mas que, como uma miragem no deserto, estará sempre distante. Porém, alguns princípios podem ser, pelo menos, discutidos.
O primeiro é que somos também responsáveis. O dever ético de solidariedade impõe-nos participar, individualmente ou através de ONGs, na medida de nossas possibilidades, tentando minorar o problema. Como?
a) Poder Legislativo: editando lei que aborde especificamente a matéria;
b) Poder Executivo: dando, em todos os níveis, maior atenção ao tema. Daí a relevância da ação dos estados, pois os municípios temem dar condições melhores e atrair mais indigentes.
c) Poder Judiciário: Atuar no sentido de investigar se possuem algum direito previsto em lei. A Justiça Federal poderia promover um mutirão junto a esses excluídos, a partir de um centro de triagem, para a análise de eventuais detentores de benefícios sociais (LOAS) ou previdenciários. A Justiça Estadual examinando casos de interdição e assemelhados. A OAB pode ser uma parceira importante, através de serviço voluntário de advogados e estagiários. Idem o MP e as Defensorias, onde estiverem estruturadas. Óbvio que isto não é fácil, porque poucos se disporão a trabalhar com pessoas mal apresentadas e por vezes com mau cheiro. Mas não é possível que a relação dos indigentes com a Justiça ocorra somente quando acusados de vadiagem.
Não se está aqui, ingenuamente, querendo dar solução definitiva a um problema que, sabidamente, é dificílimo. Por vezes, nem os indigentes querem a mudança. Em outras, podem estar dominados pelo vício, com recuperação quase impossível. Mas é preciso tentar. Como se diz na canção “Impossible dream”, do filme “O homem de La Mancha”: “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível...”
Em suma, é preciso ver em cada morador de rua um ser humano, uma esperança. Saber que entre eles há atitudes de dignidade, como a do indigente Jesús Silva Santos, que no dia 9 p.p., em São Paulo, encontrou U$ 10.000 dentro de uma bolsa e os entregou à Polícia, dizendo que sua mãe o ensinou a não roubar.
Fonte:Conjur
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