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De algum baú da memória. Na casa de uns vizinhos, as crianças da minha idade viam os pais gritando e também gritavam. Viam os pais brigando e também brigavam. Era como um reflexo, numa época em que não existe maior referência do que os pais.
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Um dia, brincando na casa deles, meu amigo, que devia lá ter seus seis, sete anos, ficou irritado com o irmão mais novo, de quatro, cinco anos. Ao se irritar, sentou-lhe a mão. O pai viu a cena e, como num efeito cascata às avessas, bateu no filho mais velho. O filho mais velho, então, retrucou:
-Você também bate nele! E bate em mim!
Um tapinha não dói. Certo?
O pai parou, pensou e saiu-se com esta:
-O dia em que você tiver o seu filho você bate.
Faz anos que vi a cena, mas lembro que saí da casa do meu amigo mal vendo a hora de ter meu próprio filho, para também ter minha cota num direito inalienável. Como uma posse.
E não tenho a menor ideia do que teria acontecido se a presenciasse em 2011, ano em que deputados aprovaram uma lei que proíbe os pais de agredirem os filhos. Com não mais de oito anos, seria o meu amigo capaz de dizer que estava protegido pela lei da palmada?
Eu serviria como testemunha?
Sabendo que estava protegido, poderia uma criança aprender desde cedo a cultura da chantagem, e ameaçar levar um pai à cadeia só porque tomou um tapa de censura ao ser impedido, de repente, de beber o vidro de detergente?
A lei, aparentemente, tem uma série de empecilhos práticos. Mas uma coisa parece inegável: deixa claro que o tapa contra alguém mais fraco, mais indefeso, não é patrimônio cultural. É, sim, crime. Dizer, como fez a OAB, que agressão existe desde o Brasil Colônia e, por isso, dificilmente será coibida, é praticamente um lamento pela perda dos valores e das práticas de um período honrado. Que nos legou a escravidão.
Há poucos anos, fazia sucesso nas rádios e nas casas noturnas um funk em que alguém jurava que um tapinha não doía. Era brincadeira, mas que desencadeou uma série de discussões e processos jurídicos de pessoas preocupadas com a banalização da violência. Mas a maioria jurava: só queria dançar.
Na época, um cartaz de uma campanha contra a violência sobre as mulheres fez, para mim, a leitura definitiva da coisa toda. Trazia uma mulher com os olhos inchados, roxos e uma inscrição embaixo: “Um tapinha não dói”.
Pouco depois, em 2006, veio a Lei Maria da Penha, e uma gritaria de quem via na proteção de um grupo visivelmente sensível da sociedade uma forma de “discriminação”. Gritaram sozinhos: a lei solapou a cultura do silêncio, e impulsionou não só a conscientização, mas uma série de estruturas que viabilizavam a proteção efetiva e a implementação de políticas públicas.
Num País onde mulheres agredidas eram motivo de chacota em comarcas comandadas por juízes e delegados que, em nome da honra masculina, viam em toda ação uma reação (e esqueciam que a lei da dignidade humana extrapola a lei da física), o acesso a delegacias especiais, previstas na mesma lei, significou um avanço considerável.
O desafio agora é semelhante. A gritaria também. De repente, alguns saudosistas chegam a fazer relatos apaixonados das lições didáticas incutidas nas surras aplicadas pelos pais.
Um tapinha não dói, não é verdade? Pois pergunte à criança que encontra na rua o abrigo para as agressões sob tetos familiares.
“Mas o Estado vai regular até mesmo a forma como eu educo meus filhos?”
“Vai proibir o tapa educativo para evitar o soco no olho?”
“Vai jogar fora o bebê para se livrar da água suja?”
São questionamentos pertinentes, sobretudo num tempo em que as liberdades individuais, entre elas a que permite educar o filho com rédea dura ou não, deveriam estar acima da lei. Ou melhor: não ser regulada por lei.
O medo é que as crianças cresçam “sem limites”. Vai ver todos os criminosos do Planeta tenham cometido estupros, roubos ou assassinatos porque, em determinada altura da vida, tenha faltado palmada dos pais. Como se, na prisão, a carência de porrada fosse a variável ausente que permitiu o deslize.
Limite que, justamente para os pais, parece ter uma fronteira confusa entre o que é palmada e espancamento. Não seria capaz de contabilizar quantas crianças já vi, nas ruas ou nas casas de amigos, caírem no choro depois de um passo em falso seguido por um tapa no rosto, na bunda, nos braços.
Nada mais covarde, como diz o amigo Leandro Fortes, que virou corrente no Facebook ao escrever: “Quando seu chefe lhe enche o saco, você não bate nele. Quando o porteiro lhe desrespeita, você não bate nele. Sabe por quê? Porque você tem medo de levar uma porrada. Mas, numa criança, você se sente no direito de bater. Porque sabe que ela é mais fraca e não vai revidar. Você bate numa criança, basicamente, porque é um covarde. O resto, é uma cultura velha, obsoleta e criminosa que, felizmente, está sendo coibida pela lei.”
Palavras de quem nunca precisou levantar a mão e bater nos filhos, hoje grandes, para ser respeitado.
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