quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Especialista adverte"os bandidos de farda são o maior mal na áreade segurança pública"

http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/especialista-adverte-os-bandidos-de-farda-sao-o-maior-mal-na-area-de-seguranca-publica/




Não percam a excelente entrevista abaixo, que a jornalista Malu Gaspar fez com o sociólogo especialista em segurança pública Claudio Beato, publicada na edição de VEJA que está saindo hoje das bancas.

Beato aborda assuntos fundamentais na área da segurança pública, como a existência de milícias, a a demora do Estado em agir contra o tráfico nos morros do Rio e a banda podre da polícia.

. . . . . . . . . . . . . . . .

É hora de limpar a polícia

O sociólogo mineiro Claudio Beato, 55 anos, tem se destacado como uma das mais sensatas vozes no debate da área à qual se dedica há mais de duas décadas, a segurança pública. Gosta de ir a campo para conhecer as experiências bem-sucedidas.

Já passou temporadas na Colômbia, no México e, mais recentemente, nos Estados Unidos, como professor visitante na Universidade Harvard.

Coordenador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, nos últimos tempos Beato tem se dedicado a compreender as milícias (quadrilhas formadas por policiais e ex-agentes), fenômeno brasileiro com contornos próprios no Rio, onde esses bandos dominam vastos territórios espalhando o terror sob o abrigo da farda.

Há um clima de otimismo em relação às conquistas obtidas no Rio de Janeiro contra o crime organizado. Ele se justifica?

Devolver ao Estado e aos cidadãos o domínio sobre territórios há décadas subjugados pelo crime é um avanço inquestionável, e quem vive nessas favelas sabe disso melhor do que ninguém. Mas é preciso pôr a ocupação das favelas do Rio sob uma perspectiva mais realista, dando ao feito a dimensão correta.

Trata-se de um passo a ser festejado, um ótimo ponto de partida, mas não

mais do que isso. Para fazer o crime refluir de verdade, será necessário mexer em pontos nevrálgicos, antigos nós da segurança pública fluminense ainda por desatar.

Que nós são esses?

É preciso empreender uma faxina na polícia do Estado, que figura entre as mais corruptas do país. A podridão não se limita às bases da corporação, mas está entranhada nos mais altos escalões.

A descoberta de que o mentor do assassinato de uma juíza era um tenente-coronel envolvido com grupos de extermínio ou a saída do país de um deputado sob ameaça de milícias são dois estarrecedores episódios que expõem o problema de forma inequívoca.

A limpeza na instituição deve ser implacável. Afinal, as quadrilhas formadas pelos bandidos de farda, esses que compõem as milícias, são, a meu ver, o maior mal a ser combatido na área da segurança pública — um fenômeno brasileiro que ganha contornos próprios no Rio de Janeiro.

O senhor está dizendo que as milícias são tão ou mais nocivas do que o próprio tráfico?

Isso mesmo. Assim como o tráfico, elas dominam bairros inteiros. Torturam, matam e expulsam as pessoas de suas casas. Infiltram-se também no dia a dia dos cidadãos, explorando serviços essenciais como transporte coletivo, água e gás.

Mas são ainda mais perigosas porque seus líderes operam de dentro da polícia e se mantêm ali quanto podem, galgando postos na hierarquia e evitando que os próprios crimes sejam investigados.

Ou seja, eles têm poder no mundo formal. Desfrutam de ampla inserção no meio político. Graças a esse caráter camaleônico, esses bandos acabam sendo vistos por muita gente como um mal menor, até aceitável.

Um absurdo. As milícias são o que há de mais parecido no Brasil com as Máfias italianas. E tudo indica que conquistarão ainda mais território e poder.


Milicia armada em favela do Rio (Foto: Wilton Junior / AE)


O que o faz acreditar nisso?

A tendência é que, com o enfraquecimento do tráfico, que perdeu recentemente alguns de seus QGs, as milícias comecem a assumir também o comércio de drogas. Aqui e ali, já surgem sinais de que essa transferência está em curso.

Se isso se concretizar, teremos o pior de todos os cenários. Veja o que ocorreu na década de 90 em Medellín, na Colômbia. Os paramilitares, saudados então como solução no combate do narcotráfico, acabaram por se tornar, eles próprios, os chefões do crime organizado. Tomaram o controle das favelas e implantaram seu próprio regime de terror. Nesse período, os índices de criminalidade foram às alturas.

Em situação-limite, a sociedade colombiana se sentiu compelida a agir.

O que se pode aprender com o caso colombiano?

As coisas só começaram a mudar na Colômbia quando se deixou de escamotear o problema. O Estado empreendeu então uma profunda e corajosa devassa na polícia, seguida de ampla reforma institucional, com iniciativas para atrair e incentivar os bons agentes e tolher as más práticas.

Foi um processo demorado, que compreendeu reciclagem profissional, contratação de novos quadros e aumento nos salários. Até o Código de Processo Penal colombiano passou por ajustes para que a apuração dos crimes pudesse ser mais célere e eficaz.

Cerca de 20% da corporação acabou banida, iniciativa que foi a base para todos os outros avanços que se seguiram. O caso colombiano reforça também a importância de uma força-tarefa nacional, com diversos poderes e alçadas guiados pelas mesmas metas.

É possível reproduzir a experiência no Brasil?

Uma boa articulação entre as polícias não só é possível como absolutamente necessária para obter avanços na área da segurança pública. No caso do Rio, está claro que, por mais competente que seja o secretário José Mariano Beltrame, ele não conseguirá extirpar o tráfico, tampouco as milícias, sozinho.

Estamos tratando, afinal, de organizações criminosas com tantos tentáculos institucionais que só mesmo uma ação sincronizada nos moldes da operação Mãos Limpas italiana — com a participação da Polícia Federal, do Ministério Público e da própria Justiça — poderá abatê-las.

A recente prisão do chefe da gangue da Rocinha, o Nem, enfatiza essa ideia. Talvez ela não tivesse acontecido de forma tão célere se a PF não entrasse em cena. É a mesma PF que deve vigiar as fronteiras para que armas e drogas não sejam infiltradas no país, chegando sem grandes obstáculos às favelas brasileiras.

O ideal é que o Brasil unifique as polícias Civil e Militar. Trata-se de tema espinhoso, mas precisa ser encarado de uma vez por todas por autoridades com visão de longo prazo.

Por que unificar as polícias é tão crucial?

É vital para obter ganhos de eficiência. Nas grandes economias do mundo e em países da América Latina, já funciona assim. O Brasil é um dos poucos que têm duas polícias atuando de forma independente e ainda por cima competindo entre si.

Pela lei, cabe à Polícia Civil investigar e à Militar, fazer o policiamento ostensivo. Só que na prática as atribuições se sobrepõem. Afinal, onde começa a investigação e acaba a vigilância? Prender um criminoso em flagrante não seria uma etapa do trabalho de investigação? Os conflitos que decorrem daí só prejudicam a apuração dos crimes.

A ineficácia é espantosa: na grande maioria dos Estados, não mais do que 15% dos homicídios são elucidados. É preciso também reformular o Código de Processo Penal, que torna os inquéritos peças jurídicas tão arcaicas quanto ineficientes. Nosso arcabouço institucional ainda tem muito a ser melhorado.


Polícias Civil e Militar: complementares na teoria, rivais na prática
Quais são os indicadores que apontam para a inoperância de nossas polícias?

Segundo o último ranking divulgado pelo Fórum Econômico Mundial a respeito da solidez das instituições, a polícia brasileira é pior do que a de 65 países. Como as pessoas não confiam na corporação, não comunicam os crimes de que são vítimas.

Isso se repete em todo o Brasil, mas, no Rio, a situação é mais grave. Em lugar de prestar serviço à população, a polícia fluminense tornou-se tão temida quanto os próprios bandidos. Ela mata muito. Mais precisamente, 6,98 pessoas para cada grupo de 100 000 habitantes, de acordo com o último dado disponível.

Em São Paulo, esse mesmo índice é de 1,07. Em Minas Gerais, 0,27 e, nos Estados Unidos, 0,12. A polícia do Rio é também a que menos soluciona crimes no Brasil.

Como chegamos ao ponto de bandidos ostentarem armas à luz do dia sem ser incomodados, como ainda se vê em morros cariocas?

A conivência da polícia e dos políticos ajuda a explicar essa aberração. Foram décadas até que se chegasse a tal situação. E não foram poucas as chances de interromper o processo.

Assim como em outras grandes cidades que passaram por flagelo semelhante, como Los Angeles ou Bogotá, a história teve início quando as gangues que atuavam nas favelas cariocas começaram a se organizar dentro das cadeias, na década de 80. Surgiram aí as facções criminosas ainda hoje em atividade.

O mesmo se deu em São Paulo, com o PCC, e em outras cidades do país, em menor escala. Mas só mesmo no Rio, onde a promiscuidade entre a polícia e a bandidagem se manifesta de forma mais pronunciada desde a era dos grandes bicheiros, os criminosos encontraram um ambiente tão favorável.

Isso permitiu que evoluíssem para o absurdo que é o domínio de porções da cidade pelos marginais. Quando contei a um amigo americano que me visitou recentemente sobre os avanços no Rio, ele indagou: “Deixe-me ver se entendi. Vocês tinham áreas inteiras dominadas por traficantes e nunca haviam feito nada a respeito?”. Ele está certo. O mais espantoso é que o Estado tenha demorado tanto a agir.

Os últimos relatórios sobre a violência no país mostram que o Sudeste deixou de ser a região onde mais se registram assassinatos, posto que ocupou por décadas. O recorde agora é do Nordeste. A que se deve essa mudança?

A explosão da criminalidade no Sudeste levou a um relevante aumento de investimentos dos governos estaduais na área de segurança nos últimos anos. Junto a isso, começaram a aparecer alguns sinais de gestão mais moderna, com o dinheiro sendo aplicado de forma mais eficaz que o usual.

São Paulo, um dos Estados brasileiros onde a taxa de homicídios mais caiu, é um bom exemplo. Constituiu-se ali uma base de dados comum às duas polícias, e as estatísticas passaram a subsidiar ações bastante objetivas de combate ao crime nos locais de maior incidência. Também se apostou muito na qualificação de pessoal e no estabelecimento de metas bem definidas de redução da criminalidade, com bônus previstos para os agentes que alcançam os melhores resultados.

E o que explica a escalada de homicídios no Nordeste?

Os Estados nordestinos seguiram rumo inverso ao do Sudeste. Os investimentos minguaram, e a polícia foi sucateada. Com exceção de Pernambuco, que tem progredido, as corporações estão desaparelhadas, destreinadas e prescindem de estatísticas confiáveis que permitam uma estratégia eficiente para a prevenção de crimes.

Não se dá prioridade à área de segurança pública e ainda se adota por lá um discurso falacioso segundo o qual o recrudescimento do crime seria consequência inevitável do crescimento econômico. Uma grande bobagem.


São Paulo é um bom exemplo, segundo Cláudio Beato, de ações e investimentos capazes de melhorar a qualidade e a eficácia da polícia
Não há especialistas que sustentam justamente o contrário, argumentando que é a pobreza o grande motor da criminalidade?

Trata-se de outro argumento de cunho ideológico, que não encontra nenhum respaldo na realidade. Hoje dispomos de estatísticas de sobra a indicar que nem todo lugar pobre é violento.

O que os estudos mostram, isso sim, é que não há lugar violento que não seja muito pobre, com elevados índices de gravidez na adolescência e de desemprego entre os jovens.

O que se pode extrair da experiência desses lugares mais pobres?

Está provado que onde há redes de controle social fortes — como associações e ONGs — a criminalidade arrefece. Um dos programas mais bem-sucedidos nessa tarefa, que começou no início dos anos 2000, é o Fica Vivo, da Prefeitura de Belo Horizonte — inspirado, por sua vez, no sucesso da experiência de Boston, nos anos 80.

O primeiro passo foi prender os líderes das gangues que os levantamentos indicavam ser responsáveis pela escalada de assassinatos. Depois, abriram-se as escolas no fim de semana e promoveram-se atividades culturais e de formação profissional.

Resultado: os homicídios na capital mineira já caíram pela metade desde 1998.

Mas cabe aqui uma ressalva. O importante nessa e em outras iniciativas foi fazer com que o Estado atuasse em conjunto com a sociedade. Sozinhas, as ONGs sempre correm o risco de ficar acuadas e até ser cooptadas pelo poder do tráfico. Foi o que se viu no infeliz episódio em que um líder comunitário da Rocinha acabou flagrado vendendo fuzil, mais um escândalo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário