Ainda assim, os historiadores precisaram de várias décadas, de infinita paciência e longas pesquisas para desentranhar o universo das falsidades, da vilania e até mesmo do folclore sobre a vida de Stalin. A cada ano surgiam novas pistas, como o diário da mãe de Stalin, Ekaterina (Keké), que só permaneceu porque Stalin nunca soube da existência dele, ou os depoimentos de testemunhas, as quais, após 1991, resolveram finalmente falar ou, o que é pior, alterar seus depoimentos anteriores. Depois ainda surgiram arquivos inesperados, como os de Baku, no Azerbaijão, que documentam os assaltos a bancos coordenados por Stalin na juventude. Por isso, ao menos para aqueles historiadores decentes, que não costumam ir com tanta sede ao pote, a reconstrução da vida de Stalin é um empreendimento desanimador e cheio de pistas falsas.
Lilly Marcou, historiadora francesa de origem romena, demorou quase 30 anos para compor A Vida Privada de Stalin (Zahar, 259 págs., R$ 54,90 e R$ 34,90 o e-book). Embora não seja tão bem documentada quanto o mais recente O Jovem Stalin, de Simon Sebag Montefiore, é a mais equilibrada, abrangente e escrupulosa biografia da vida privada de Stalin. Ou melhor, da progressiva supressão da vida privada, título que melhor definiria a trajetória desse personagem.
A reconstrução de sua vida, do nascimento até março de 1917, é mais detalhada e bem menos folhetinesca do que nas biografias anteriores, até por se utilizar bastante de testemunhos orais, com o objetivo de revelar a face mais humana do conspirador bolchevique. Até completar 35 anos, Stalin viveu quase toda a juventude entre as prisões e o exílio. Sua passagem pela aldeia de Kostino, ao norte da Sibéria Central, é dramática e ele escapa por pouco de morrer de tuberculose. Isolado de seus contatos no partido e paralisado em suas ações, não tinha outra coisa a fazer senão adaptar-se à indigência cotidiana e à solidão na Sibéria. Procurou ler, estudar línguas e escrever, incluindo seus trabalhos sobre as nacionalidades.
Em resumo, Stalin esteve longe de ser aquele revolucionário emigrado, vivendo na Europa como Lenin, Trotski, Plekhanov, Zinoviev e tantas outras figuras do marxismo russo, para os quais a miséria ou o obscurantismo intrínseco às massas camponesas, durante o período czarista, eram conceitos filosóficos ou políticos. Foi o único dos principais bolcheviques de primeira hora a impregnar-se de maneira íntima e cotidiana do infortúnio dos pobres. Marcou demonstra o quanto esse longo e cruel exílio parece tê-lo endurecido ainda mais, o que repercutirá na maneira como ele conceberá a luta contra aqueles com quem não concordava.
Na segunda metade da década de 1920, Stalin viveu a vida tradicional de um chefe de família. Exceto pelos meses no balneário de Sotchi, para curar-se do reumatismo articular no braço e de outras mazelas do seu tempo de siberiano, viveu com a família na sua dacha em Zubalovo, confraternizando nos aniversários ou divertindo-se na sala de bilhar, seu jogo preferido.
Embora Marcou revele aos leitores todos os detalhes e versões, não embarca facilmente no folclore a respeito de todos os casos amorosos de Stalin. “Por enquanto, nenhum arquivo ou confidência familiar permite respostas definitivas”, afirma a historiadora, para a frustração dos leitores curiosos. Analisa e ainda pondera a respeito de todas as versões do suicídio de Nadejda Alliluyeva, a segunda mulher de Stalin. O suicídio tornou-se objeto de controvérsia porque o líder soviético liberou para a imprensa em 1932, em nota, uma lacônica “morte súbita”, enquanto para os filhos disse que ela apenas morrera de apendicite aguda, proibindo-os de tocar no assunto.
A mentira engendrou versões rumorosas, cada uma mais fantasiosa que a outra: a guarda pessoal de Stalin, a seu mando, a matara, porque ela o teria flagrado com outra mulher. Talvez o sionismo internacional houvesse tramado a morte. Ou ela teria se suicidado por manter um caso amoroso com o primeiro filho de Stalin, Iacha. A imaginação mórbida sempre floresce em sociedades desinformadas. De qualquer forma, Stalin viveu o episódio como uma vergonha e uma traição e nunca conseguiu processar a morte da sua segunda mulher. O luto não parecia consumado, uma vez que ele pessoalmente parecia sempre procurar de maneira obsessiva por um culpado.

Obsessões e negligências. Nas horas vagas, Stalin lia e assistia a faroestes, mas o tempo era raro para a filha Svetlana
A pesquisadora documenta a rara capacidade de cálculo político de Stalin. Estabelecer afinidades com imperadores e czares permitiu ao tirano da Geórgia livrar-se dos compromissos vinculados às promessas originais de construção do socialismo, no fim impossíveis de ser cumpridas. Stalin expulsou a barbárie da Rússia por meios bárbaros, transformando-a numa potência industrial, mas isso ao custo de forjar uma sociedade traumatizada pela violência, desinformação e obscurantismo, que acabaram por chafurdá-la em todos os tipos de psicoses, obsessões e pavores.
Com a conivência criminosa da era Kruschev, que, a rigor, durou até Mikhail Gorbachev, todas as testemunhas se calaram. Algumas até 1966, outras até 1973, sua própria filha, Svetlana Alliluyeva, até 1991, quando confessou: “Ele foi um péssimo e negligente filho, do mesmo modo como foi mau pai e marido. Dedicava seu ser inteiro a outras coisas, à política e à luta. Pior do que isso: ele permitiu e estimulou que sua política destruísse e consumisse os seres amados”.
Após o terror da coletivização forçada e dos expurgos assassinos, a simbiose entre Stalin e a polícia secreta dominou sua vida privada de tal forma que em certos momentos ele chegou a perder completamente o controle das ações mais escusas. O que resultou literalmente no fim de sua vida privada. Quando veio a guerra, trabalhava 18 horas seguidas, dormindo no sofá do seu gabinete, de uniforme. “Stalin não manipulava apenas todos os cordões do front. Ele era o próprio front”, conclui Marcou.
Agraciado com o título de Homem do Ano, Stalin ganhou imagem de capa e a manchete de “salvador do mundo ocidental” na revista Time em 1942. Foi sua época de maior sucesso no Ocidente. Políticos, escritores, diplomatas e militantes, todos sucumbiam à mística da clausura, do mistério calculadamente dosado daquele homem dotado de uma força de sedução, calcada no domínio da conversa sigilosa, personalizada de acordo com o interlocutor. Naqueles anos, nunca foi severamente questionado sobre expurgos, julgamentos e execuções. Todos se inclinavam perante o revolucionário, ignorando deliberadamente o tirano.
Paradoxalmente, no mesmo momento no qual posou como um dos grandes vencedores da história, sua vida privada estava em farrapos. Foi também um excelente empresário do seu próprio personagem, a ponto de a ele sucumbir, rompendo, sem perceber, quaisquer laços com a realidade familiar. A inocência das pessoas que ele matava ou enviava para o desterro não o perturbava. Conforme radicalizava o terror, perdia qualquer noção de apego ou afeição, ou mesmo de piedade. “A gratidão é uma doença dos cães”, declarou certa vez.
Até as relações com a mãe, bastante deterioradas, esgarçaram-se. Quando ela morreu, em junho de 1937, ele não compareceu ao enterro, enviou apenas uma coroa de flores escrita em russo e georgiano. Uma anotação a lápis, em georgiano, no que restou do caderno de Keké, registrou o seguinte diálogo da mãe com o filho:
– Iosif, o que você é agora?
– Secretário-geral do Partido
Comunista.
– O que é isso?
– Mamãe, lembra-se do nosso czar?
– Claro!
– Pois bem. De certa forma, sou o novo czar.
E Keké, finalizando o diálogo, com aquela tristeza resignada:
– Pondo tudo na balança, você teria feito melhor virando padre.
Naquela confusão de vozes do passado, ainda brilhava uma última epifania de lucidez
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