Jacy Lima de Oliveira tinha 27 na época da invasão da polícia.
Preso como suspeito, ele entrou com ação contra o Estado.
Jacy Lima de Oliveira tinha 27 na época da invasão da polícia.
Preso como suspeito, ele entrou com ação contra o Estado.
O ex-detento e atual pastor evangélico Jacy de Oliveira, no lugar que, segundo ele, se localizava o Pavilhão 9 do Carandiru - hoje um parquinho infantil do Parque da Juventude (Foto: Flavio Moraes/G1)
Jacy Lima de Oliveira diz lembrar todos os detalhes daquele 2 de outubro de 1992. As imagens, o cheiro, e, principalmente, os gritos. "Foi um inferno na Terra, estou vivo por um milagre", conta o ex-presidiário da antiga Casa de Detenção e sobrevivente do massacre que deixou 111 mortos, quando há 20 anos a polícia de São Paulo invadiu o pavilhão 9 da penitenciária após um início de rebelião."Eu sobrevivi, eu vi a história, eu pisei em sangue que dava quase na canela, e isso não é exagero, não! Ouvi gritos que até hoje ecoam na minha mente", disse Jacy ao G1, em uma entrevista feita no Parque da Juventude, construído após a implosão dos pavilhões do Carandiru e inaugurado em 2003. "Quando venho aqui eu me sinto livre, feliz de estar vivo. E me sinto também muito triste por saber que aqui morreu muita gente, e que os crimes estão impunes. Na verdade isso aqui é um tapete em cima de um grande montão de sujeira."
carandiru: 20 anos
Jacy foi para o maior presídio da América Latina aos 27 anos, suspeito de um roubo a uma mansão no Morumbi - que alega não ter participado. "Eu vivia uma vida de criminalidade, muita droga, era um desespero, mesmo. Mas quando eu estava no auge do crime e da droga, achei por bem procurar um trabalho."- O massacre ficou conhecido internacionalmente, e até agora nenhum réu foi preso. Todos respondem ao processo em liberdade - e nenhum ficou ferido na ação. Alguns se aposentaram e outros morreram antes mesmo de serem julgados.
Segundo ele, um irmão achou um bico de auxiliar de pedreiro e ele aceitou. Quando chegou lá, viu que um outro ajudante era da mesma quadrilha que ele participava. Segundo Jacy, que na época era conhecido como "mineirinho" pela origem do estado vizinho, o companheiro de gangue organizou o assalto, mas sem chamá-lo. "Fiquei 11 meses e quatro dias preso. Nesse tempo fui seis vezes ao Fórum. Nunca provaram nada contra mim nesse caso."
Jacy entrou com uma ação contra o Estado na Justiça por ter ficado preso sem condenação e, segundo ele, ganhou em primeira e segunda instâncias, e agora aguarda a liberação da indenização. O atual pastor evangélico, e pai de dez filhos, publica neste mês um livro com seu relato do massacre. O título será exatamente esse: "Eu sobrevivi para testemunhar o massacre do Carandiru".
Biblioteca do Parque da Juventude foi construída, segundo Jacy, no lugar do Pavilhão 2, onde era feita a triagem dos presos do Carandiru (Foto: Flavio Moraes/G1)
O começo: rebelião no Pavilhão 9Jacy conta que naquele 2 de outubro era o seu dia de fazer a comida na cela. Ele saiu para procurar óleo antes do fim do período de banho de sol e, quando descia as escadas, viu uma aglomeração estranha no segundo andar, uma briga entre presos.
"Quando decretaram a rebelião, a gente estava esperando a hora, porque automaticamente o Choque ia entrar. Aí começaram a quebrar tudo. Tocaram fogo em toda papelada da justiciária, quebraram os espelhos da barbearia, quebraram os canos de esgoto e aquela água de fezes começou a desaguar dentro do pavilhão", disse ele.
"Quando foi 18h, se viu pela televisão as aglomerações no portão. Só que não só entrou o Choque, entrou o Gate [Grupo de Ações Táticas Especiais] e a Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar]. Na minha concepção, eles entraram para matar, não para apaziguar, acabar com a rebelião."
'Matança'
"Eu tive um privilégio, que tenho pra mim como um milagre, porque muitos que passaram ali, como eu, morreram a facada, a tiro a queima roupa na cabeça. Eu passei no corredor da morte duas vezes. Descendo em direção ao patio e voltando. Subiram na minha frente umas 80 pessoas e eu ouvi o grito da morte delas."
Sidney Sales: 'Eu não acredito na Justiça'
(Foto: Giovana Sanchez/G1)
Jacy acredita que os mortos foram muito mais do que os oficiais 111. "Até hoje tem família procurando os filhos no sistema carcerário", diz ele.(Foto: Giovana Sanchez/G1)
Outro sobrevivente concorda com Jacy: os números reais de mortos seriam bem maiores. Sidney Sales estava no quinto andar do Pavilhão 9 quando começou a rebelião, e conta que na hora que os policiais chegaram, ele estava abaixado, rezando junto com outros presos.
"Policial invadiu e pediu para todos nós tirarmos a roupa e, quando saímos, já existiam diversas pessoas estiradas no chão. Descemos até o primeiro andar e pediram para ficar com a cabeça entre as pernas. Ali, por volta de umas duas ou três horas, os policiais mandaram que os detentos retornassem a suas celas. E, quando eu estava nessa fila, um policial bateu no meu ombro. Eu pensei que ele tirar a minha vida, mas foi justamente quando ele me pediu para carregar alguns cadáveres."
Sidney disse, num depoimento dado na última sexta-feira (28) em um encontro de movimentos sociais em São Paulo, que carregou cerca de 35 cadáveres. Quando percebeu que um dos corpos que carregava era justamente de um preso que fazia o mesmo que ele, entendeu que aquilo se tratava de "queima de arquivo" e fugiu para dois andares superiores. Lá, conta que encontrou mais três policiais que lhe mostraram um molho de chave e disseram que ele teria uma única chance de sobreviver: se a chave que escolhessem abrisse a cela à sua frente. "Quando ele cata aquela chave, eu recito o salmo 91, e quando ele bate a chave e torce, o cadeado abre, e milagrosamente eu entro pra dentro daquela cela."
Emocionado, Sidney contou que voltou para a criminalidade e para as drogas depois do massacre, quando foi transferido para a penitenciária de Mirandópolis e depois liberto. Anos depois, em uma troca de tiros com uma gangue rival, foi baleado e ficou paraplégico. Na cadeira de rodas, foi preso novamente em um assalto e convertido à igreja evangélica dentro da cadeia. Hoje, Sidney é coordenador de um centro de reabilitação de jovens viciados em drogas. Autor do livro "Paraíso Carandiru", ele ajuda no tratamento de 120 pessoas em uma chácara, em Jundiaí. "O sistema carcerário me fez uma pessoa qualificada para o mundo. Tento reverter a sequela que o Estado me deixou, fazendo o que o Estado não fez."
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"Eu sobrevivi, eu vi a história, eu pisei em sangue que dava quase na canela, e isso não é exagero, não! Ouvi gritos que até hoje ecoam na minha mente", disse Jacy ao G1, em uma entrevista feita no Parque da Juventude, construído após a implosão dos pavilhões do Carandiru e inaugurado em 2003. "Quando venho aqui eu me sinto livre, feliz de estar vivo. E me sinto também muito triste por saber que aqui morreu muita gente, e que os crimes estão impunes. Na verdade isso aqui é um tapete em cima de um grande montão de sujeira."
carandiru: 20 anos
Jacy foi para o maior presídio da América Latina aos 27 anos, suspeito de um roubo a uma mansão no Morumbi - que alega não ter participado. "Eu vivia uma vida de criminalidade, muita droga, era um desespero, mesmo. Mas quando eu estava no auge do crime e da droga, achei por bem procurar um trabalho."- O massacre ficou conhecido internacionalmente, e até agora nenhum réu foi preso. Todos respondem ao processo em liberdade - e nenhum ficou ferido na ação. Alguns se aposentaram e outros morreram antes mesmo de serem julgados.
Segundo ele, um irmão achou um bico de auxiliar de pedreiro e ele aceitou. Quando chegou lá, viu que um outro ajudante era da mesma quadrilha que ele participava. Segundo Jacy, que na época era conhecido como "mineirinho" pela origem do estado vizinho, o companheiro de gangue organizou o assalto, mas sem chamá-lo. "Fiquei 11 meses e quatro dias preso. Nesse tempo fui seis vezes ao Fórum. Nunca provaram nada contra mim nesse caso."
Jacy entrou com uma ação contra o Estado na Justiça por ter ficado preso sem condenação e, segundo ele, ganhou em primeira e segunda instâncias, e agora aguarda a liberação da indenização. O atual pastor evangélico, e pai de dez filhos, publica neste mês um livro com seu relato do massacre. O título será exatamente esse: "Eu sobrevivi para testemunhar o massacre do Carandiru".
Biblioteca do Parque da Juventude foi construída, segundo Jacy, no lugar do Pavilhão 2, onde era feita a triagem dos presos do Carandiru (Foto: Flavio Moraes/G1)
O começo: rebelião no Pavilhão 9Jacy conta que naquele 2 de outubro era o seu dia de fazer a comida na cela. Ele saiu para procurar óleo antes do fim do período de banho de sol e, quando descia as escadas, viu uma aglomeração estranha no segundo andar, uma briga entre presos.
"Quando decretaram a rebelião, a gente estava esperando a hora, porque automaticamente o Choque ia entrar. Aí começaram a quebrar tudo. Tocaram fogo em toda papelada da justiciária, quebraram os espelhos da barbearia, quebraram os canos de esgoto e aquela água de fezes começou a desaguar dentro do pavilhão", disse ele.
"Quando foi 18h, se viu pela televisão as aglomerações no portão. Só que não só entrou o Choque, entrou o Gate [Grupo de Ações Táticas Especiais] e a Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar]. Na minha concepção, eles entraram para matar, não para apaziguar, acabar com a rebelião."
'Matança'
"Eu tive um privilégio, que tenho pra mim como um milagre, porque muitos que passaram ali, como eu, morreram a facada, a tiro a queima roupa na cabeça. Eu passei no corredor da morte duas vezes. Descendo em direção ao patio e voltando. Subiram na minha frente umas 80 pessoas e eu ouvi o grito da morte delas."
Sidney Sales: 'Eu não acredito na Justiça'
(Foto: Giovana Sanchez/G1)
Jacy acredita que os mortos foram muito mais do que os oficiais 111. "Até hoje tem família procurando os filhos no sistema carcerário", diz ele.(Foto: Giovana Sanchez/G1)
Outro sobrevivente concorda com Jacy: os números reais de mortos seriam bem maiores. Sidney Sales estava no quinto andar do Pavilhão 9 quando começou a rebelião, e conta que na hora que os policiais chegaram, ele estava abaixado, rezando junto com outros presos.
"Policial invadiu e pediu para todos nós tirarmos a roupa e, quando saímos, já existiam diversas pessoas estiradas no chão. Descemos até o primeiro andar e pediram para ficar com a cabeça entre as pernas. Ali, por volta de umas duas ou três horas, os policiais mandaram que os detentos retornassem a suas celas. E, quando eu estava nessa fila, um policial bateu no meu ombro. Eu pensei que ele tirar a minha vida, mas foi justamente quando ele me pediu para carregar alguns cadáveres."
Sidney disse, num depoimento dado na última sexta-feira (28) em um encontro de movimentos sociais em São Paulo, que carregou cerca de 35 cadáveres. Quando percebeu que um dos corpos que carregava era justamente de um preso que fazia o mesmo que ele, entendeu que aquilo se tratava de "queima de arquivo" e fugiu para dois andares superiores. Lá, conta que encontrou mais três policiais que lhe mostraram um molho de chave e disseram que ele teria uma única chance de sobreviver: se a chave que escolhessem abrisse a cela à sua frente. "Quando ele cata aquela chave, eu recito o salmo 91, e quando ele bate a chave e torce, o cadeado abre, e milagrosamente eu entro pra dentro daquela cela."
Emocionado, Sidney contou que voltou para a criminalidade e para as drogas depois do massacre, quando foi transferido para a penitenciária de Mirandópolis e depois liberto. Anos depois, em uma troca de tiros com uma gangue rival, foi baleado e ficou paraplégico. Na cadeira de rodas, foi preso novamente em um assalto e convertido à igreja evangélica dentro da cadeia. Hoje, Sidney é coordenador de um centro de reabilitação de jovens viciados em drogas. Autor do livro "Paraíso Carandiru", ele ajuda no tratamento de 120 pessoas em uma chácara, em Jundiaí. "O sistema carcerário me fez uma pessoa qualificada para o mundo. Tento reverter a sequela que o Estado me deixou, fazendo o que o Estado não fez."
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