O tom das conversas era informal. Muitas vezes, escorregava para a rudeza, um traço característico do ex-presidente. Figueiredo, como o Brasil descobriu durante seu governo, era um homem capaz de soltar grosserias verbais inimagináveis numa figura que, como ele, ocupou o mais alto posto da República. Na Presidência, o mesmo personagem que se empenhava valentemente pela abertura política era capaz de dizer que preferia cheiro de cavalo ao de povo. Ao sair, pediu aos brasileiros que o esquecessem, numa das mais melancólicas declarações já registradas em situação semelhante. Esse é o Figueiredo que foi capturado por Orlando Brito. Tem o traço positivo da sinceridade espontânea, do homem que fala sem rodeios aquilo que pensa e, não se pode negar, de uma pessoa dotada da coragem de insultar os semelhantes em aspectos constrangedores. Nada disso o exime da contrapartida negativa. Sempre faltou a Figueiredo a compostura verbal de um presidente. Como se viu na fita de vídeo divulgada no programa Fantástico, da Globo, e como se verá nos depoimentos da reportagem seguinte, o ex-presidente era um homem de absoluta incorreção política. Cometia deselegâncias e, muito pior, injustiças a respeito das pessoas que eram objeto de seus comentários. Trata-se de um depoimento valioso, não apenas pelos bastidores que abre em relação a episódios marcantes do período em que Figueiredo convivia com o poder ou já o exercia mas também como registro do estilo, das opiniões e dos preconceitos do general.
Algumas histórias são assombrosas, como a que Brito obteve de Figueiredo sobre a escolha do político que seria seu vice, Aureliano Chaves. Conforme o general contou no depoimento ao jornalista, Aureliano virou o segundo homem do governo por acidente. Depois de convidar Figueiredo para suceder a ele, o general Ernesto Geisel quis saber a opinião do futuro presidente sobre a escolha de um vice. (Leia a reprodução dos principais trechos). Quando Geisel perguntou quem seria seu companheiro de chapa, Figueiredo ia começar a enumerar os que não escolheria: – Esse governador mineiro, seu amigo, Aureliano Ch... – e foi interrompido. – Ótimo, então não é bom comunicar logo a ele? – emendou Geisel.Segundo Figueiredo, Geisel não esperou que ele terminasse o que ia dizer-lhe. E ele estava pronto para dizer o seguinte: "Esse governador mineiro, seu amigo, Aureliano Chaves, nããão!", narrou Figueiredo. Calou-se quando viu estampado no rosto de Geisel o entusiasmo diante da citação do nome de Aureliano Chaves. Assim, pode-se dizer que a ascensão de Aureliano resultou apenas de um instante de esperteza de Geisel e de constrangimento de Figueiredo, se a história não foi um pouco melhorada pelo general com o intuito de desmerecer um homem que odiava, Aureliano.
Na fita gravada no churrasco de Paraíba do Sul, flagra-se uma provável distorção da verdade na versão que Figueiredo dá aos ouvintes quando se refere à demissão do general Ednardo D'Ávila Mello, comandante do II Exército no governo Geisel. Ele classifica como injusta a exoneração de Ednardo, cujos motivos foram a morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nas dependências do Exército. Instado por Geisel a apurar com rigor o caso Riocentro, no qual militares contrários à abertura planejaram jogar bombas num pavilhão onde acontecia um show de música, Figueiredo teria respondido: "Não vou inventar um responsável, como o senhor fez com o general D'Ávila Mello. Essa injustiça eu não vou fazer" (veja quadro).
O diálogo provavelmente está correto na essência e incorreto nos detalhes e no tom. É improvável que Figueiredo tivesse afrontado o seco e altivo general Ernesto Geisel, seu superior, acusando-o tão diretamente de ter cometido uma injustiça. "Ele nunca ousaria dizer isso a Geisel", afirma o senador Antonio Carlos Magalhães. Mesmo que o diálogo tenha ocorrido exatamente conforme a versão de Figueiredo, fica patente que ele não tinha disposição, como Geisel teve, para enfrentar as vísceras podres da linha-dura militar que estava metida com a tortura e o terrorismo. Essa fita mostrada pela Globo em primeira mão foi feita durante uma festa na casa do empresário e atual prefeito de Paraíba do Sul, Rogério Onofre de Oliveira, responsável pela gravação e por sua divulgação. Na fita, Figueiredo assume pela primeira vez que foi informado sobre o envolvimento de militares na explosão do Riocentro logo depois da detonação da bomba.
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