terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Loris Capovilla, o poder de um símbolo

O novo cardeal foi secretário pessoal do papa João XXIII




Entre os novos cardeais escolhidos pelo papa Francisco em seu primeiro consistório aparece uma figura simbólica: a de Loris Capovilla, de 99 anos, que foi secretário pessoal do papa João XXIII, o papa do século passado com quem Francisco guarda a maior semelhança.

Ninguém até agora tinha lembrado de dar o barrete de cardeal àquele que foi a figura chave, o confidente e o criador da imagem do chamado “papa bom”. Ele tinha sido relegado ao esquecimento, e, desde se aposentar como arcebispo, vivia em Sotto il Monte, a cidadezinha na qual nasceu o futuro papa João XXIII, filho de camponeses. E ali Capovilla, durante anos e quase em silêncio, fez um trabalho discreto de ajuda e conselho aos mais necessitados.

Dias depois de eleito, o papa Francisco telefonou a Capovilla e lhe disse, brincando: “O senhor tem voz de jovem”.

Hoje ele o nomeou cardeal. O escolheu como símbolo, muito ao seu estilo.

O reconhecimento dado a Capovilla pelo papa jesuíta possui forte valor simbólico, porque foi como ressuscitar um papa que não apenas foi um dos mais contestados pela Cúria Romana, como também um dos mais amados, até mesmo pelos não católicos.

Quando, já idoso e em um momento crítico da política mundial, João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, foi visto como louco pelos cardeais conservadores, como Giuseppe Siri, arcebispo de Gênova. Eles chegaram a estudar a possibilidade de buscar sua deposição.

Capovilla é a única testemunha ainda viva dos maiores segredos do pontificado breve, mas fecundo de João XXIII, o pontífice que dizia a seu secretário que, se fosse mais jovem, abriria os jardins do Vaticano às crianças pobres do bairro de Trastevere, para que “não precisassem brincar na rua, entre o tráfego de automóveis”.

Era o papa que lhe dizia, também, que se “entediava” nas tardes do Vaticano, porque ao papa “já dão tudo feito e mastigado”. Para vingar-se, convocou um Concílio Ecumênico. E nesse concílio, para o qual chamou à basílica de São Pedro os 3.000 bispos da Igreja, menos os que estavam encarcerados nos países da Cortina de Ferro comunista, tanto Capovilla quanto sua sobrinha, a freira Sor Angela, puderam ver que o papa possuía grande senso de humor, observando em circuito fechado de televisão as discussões dos cardeais, em latim: “Veja aquele bispo ali, como dorme profundamente”, ele comentava. Ou então: “Que latim horrível o daquele arcebispo”. E se divertia enviando aos bispos fotos deles dormindo durante as sessões, com uma frase em latim: “Hoc non placet” (não me agrada). E a assinava. João XXIII fez isso, por exemplo, com um dos cardeais progressistas mais importantes do Concílio, o holandês Suenens, que ensinou a nós, os jornalistas que cobrimos o Concílio, que devíamos enfatizar a simplicidade do papa.

Foi Capovilla, por exemplo, a única testemunha presente no momento em que João XXIII abriu o envelope lacrado que lhe tinha deixado seu antecessor, Pio XII, sobre o “terceiro milagre de Fátima”. Apenas ele sabe o que comentou o papa, que acabou colocando o famoso envelope num caixão.

Capovilla era jornalista e teve participação grande na criação da imagem pública de João XXIII. Foi ele quem me contou durante uma entrevista, após a morte do papa, quando estava dirigindo o Santuário de Loreto, que João XXIII às vezes lhe dizia: “Loris, vamos ter que consultar o papa sobre isso”, esquecendo que ele próprio era o papa. Também lhe contava, por exemplo, que Pio XII estava muito preocupado com a possibilidade de “comunistas se infiltrarem” nas audiências públicas e que, quando voltava a seus aposentos, lavava as mãos com álcool porque “as pessoas tinham tocado nele”. E comentava com seu secretário: “Eu não me preocupo quando as pessoas chegam perto de mim. Acho que se fazem isso é porque gostam de mim”. Sobre o sofrimento de alguns papas devido à responsabilidade de serem “representantes de Cristo na Terra”, João XXIII dizia a Capovilla: “Eu me poupei esse sofrimento porque me considero apenas o ‘secretário’ dele”.

Foi Capovilla quem revisou o testamento de João XXIII e seu “Diário da Alma”. Enquanto o antecessor do pontífice, Pio XII, antes de morrer tinha concedido títulos de nobreza a seus familiares mais próximos, João XXIII escreveu à sua família em seu testamento: “Não deixo nada a vocês porque nasci pobre e morro pobre”. E acrescentou: “Não tenho que pedir perdão a ninguém porque por nunca me senti ofendido por ninguém”.

O quase centenário cardeal tinha conhecido muito bem as condições em que fizeram Pio XII morrer dentro do Vaticano. Tinha sido um dos momentos mais tenebrosos da história dos papas. O mantiveram isolado de tudo e de todos, sob os cuidados únicos da freira suíça Sor Pasqualina, que ele tinha trazido de quando era núncio em Berlim. Ela era a todo-poderosa. E ela decidiu não dizer ao papa que ele estava morrendo, e menos ainda dizê-lo à opinião pública. Por isso é quase certo que ele morreu sem receber os sacramentos e que seu médico pessoal, Galleazzi, o traiu. Ele fotografou o papa em seus momentos de agonia, chegando a vender as fotos a algumas revistas estrangeiras, e acabou sendo expulso da Ordem dos Médicos da Itália.

Ciente desses precedentes, Capovilla decidiu que a morte de João XXIII seria contada a todos. De acordo com Capovilla, quando o papa soube que estava chegando perto de seu fim, decidiu que seus últimos dias fossem levados a público por meio do Rádio Vaticano, para informar o mundo inteiro. No estilo que o caracterizava, João XXIII disse a seu secretário: “Cheguei ao dia da grande viagem. Avise ao mundo que o papa está preparando as malas”. E pediu que lhe dessem a extrema-unção.

E foi Capovilla quem me relatou sua angústia quando, na noite em que o papa ainda estava de corpo presente, alguns irmãos deles se apresentaram no Vaticano para pedir que os deixassem dormir ali, porque não tinham dinheiro para ir a um hotel. E no Vaticano lhes responderam que ali não havia lugar para eles. Os irmãos então procuraram Capovilla, que tinha sido secretário pessoal de Roncalli (João XXIII) desde que este era cardeal patriarca de Veneza. Sem avisar a ninguém, este conseguiu encontrar alguns colchões para que os irmãos do papa pudessem dormir no corredor dos aposentos papais.

E foram esses aposentos que o papa Francisco, que nomeou Capovilla cardeal, recusou ao ser eleito pontífice, alegando que eram grandes demais para ele: “Até 300 pessoas poderiam viver aqui”, comentou. E preferiu morar no Hotel de Santa Marta, até hoje.

Capovilla pôde constatar, ainda em vida, que o papa Francisco, o mais parecido com “seu” papa João XXIII, não se esqueceu dele
e, sobretudo, não esqueceu o papa do Concílio.



http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/12/sociedad/1389567159_763136.html

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