domingo, 3 de novembro de 2013

Polícia mata cinco pessoas por dia no Brasil


Especialistas e parentes de vítimas contestam alegações de legítima defesa






RIO — Morto com um tiro à queima-roupa, atestado pelo laudo do Instituto Médico-Legal, Marcelo da Fonseca, então com 29 anos, teria trocado tiros com a polícia em uma operação na Cidade de Deus, no Rio. Teve, então, sua morte registrada como auto de resistência. No Brasil, casos como este, em que homens e mulheres são supostamente mortos em confronto com policiais, vitimam, diariamente, cinco civis. O dado faz parte de um levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, obtido com exclusividade pelo GLOBO e que fará parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013. Segundo a pesquisa, com respostas de 23 estados, 1.890 pessoas morreram em 2012. No mesmo período, 89 policiais civis e militares foram mortos em serviço em todo o país. A relação foi de 21 civis para cada policial. O FBI, por exemplo, diz que é aceitável, no máximo, a relação de 12 civis mortos para cada policial morto. Organizações internacionais falam em dez civis. As mortes em confronto com a polícia no país serão tema de uma série de reportagens que O GLOBO começa a publicar hoje.

— O número é inaceitável. Nos Estados Unidos, que têm população 60% maior que a do Brasil, em 2012, 410 pessoas foram mortas em confronto com a polícia. No México, que tem taxa de homicídio bastante próxima à do Brasil e vive uma guerra civil, a polícia mata menos — diz Samira Bueno, secretária executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — O número de mortes deveria ser zero ou perto de zero. Todos os países democráticos têm polícia forte. Mas ter polícia forte significa seguir padrão operacional e protocolos e ter mecanismos de controle para garanti-los. Quando o policial não cumpre o protocolo, ele também é vítima, ele também morre. Sabemos que existem casos em que o policial corre risco ou tem que proteger a vida de outro cidadão e atira. O fórum não se coloca contra a polícia. O que questionamos é se todas as mortes precisam mesmo acontecer.


Gilmara dos Santos tem certeza de que a morte de seu filho Felipe poderia ser evitada. Em abril de 2009, o estudante havia dormido na casa dos avós e decidiu tomar café onde morava com a mãe, o padrasto e os irmãos, no Complexo da Maré. Houvera um confronto durante a noite. Por volta das 10h50m, ele chegou à casa, viu que a mãe não estava e ficou conversando com vizinhos, já que não havia levado a chave.

— Eu fui buscar meus filhos na escola, saí um pouco mais cedo nesse dia. Quando voltei, contaram que duas pessoas passaram correndo por onde ele estava, ele se virou para ver o que era, e a polícia atirou. Daí, colocaram uma arma perto dele, o pegaram, jogaram na viatura e levaram para o hospital. Ele morreu, e ficaram dizendo que era bandido, que havia tido troca de tiro, que ele estava numa moto — lembra Gilmara, que abriu um processo contra o estado: — Contra os PMs, jamais. Tenho meus filhos, meu neto, não quero nada que os prejudique. As testemunhas tinham muito medo, e eu tenho também. Fiquei doente, é muito difícil. Jamais esqueço meu filho, que teria agora 22 anos.

SP, Rio e Bahia: 1.322 casos no ano passado

De acordo com os dados, em números absolutos, São Paulo, Rio e Bahia são os estados onde mais casos de resistência seguida de morte aconteceram. Somados, foram responsáveis por 1.322 mortes. Em SP, ano passado, 563 pessoas foram mortas.

— Há uma pluralidade de fatores para explicar estes números. A polícia é tradicionalmente violenta, existe uma cultura de violência, e os controles são inexistentes. Mas a cultura violenta não explica tudo. Em São Paulo, por exemplo, a mera mudança do secretário de Segurança fez cair em 64% o número de mortes em confronto entre janeiro e maio deste ano em relação ao mesmo período de 2012. No Rio, caiu de 1.330, em 2007, para 415 casos no ano passado. Se as polícias começarem a se perguntar que policial querem ter, que treinamento deve ser oferecido, se houver supervisão, controle e punição administrativa e do Judiciário, a tendência é que os números caiam mais — diz Theodomiro Dias, advogado, jurista e professor da FGV.

Considerando apenas os nove estados para os quais é possível fazer a comparação entre 2007 e 2012, o número de autos de resistência caiu de 1.834 para 1.165.

Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira reconhece que ter aprimorado e revisto os procedimentos operacionais, dando ênfase às abordagens e também condições para que os lugares de confrontos fossem preservados, foi medida fundamental para que os índices caíssem:

— Mudamos também a nomenclatura. Chamar de auto de resistência ou de homicídio já é um pré-julgamento. Adotamos morte em decorrência de intervenção policial. Daí, se não foi legítima defesa, é homicídio. Saber exatamente o que aconteceu é fundamental, porque algumas ações de confronto são legítimas, e outras, não.

Na Bahia, segundo Luiz Cláudio Lourenço, pesquisador do Laboratório sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, do 1º semestre de 2007 ao 1º semestre de 2012, foram registradas 1.639 mortes em confronto com a polícia no estado, “um número considerável”, afirma. Por lá, diferentemente de outras regiões onde este tipo de confronto é predominantemente com a PM, a letalidade da Polícia Civil é um terço daquela da PM.

De acordo com o pesquisador, o quadro no estado começou a se agravar nos anos 2000, chegando a uma crise em 2009, quando, após transferência de líderes de facções, houve uma onda de violência semelhante à de 2006 em São Paulo:

— A última década foram os anos em que mais se prendeu por tráfico de drogas no estado. Com este aumento da população nos presídios, para organizar a vida lá, formaram-se as facções. Elas passaram a disputar poder, o que contribui para uma dinâmica mais violenta, de mais confronto.

Mortes invisíveis

De janeiro de 2012 a setembro de 2013, segundo o Ministério Público da Bahia, foram abertos no estado 208 inquéritos que tratam de resistência à prisão, sendo a maioria de resistência a policiais.

— Você não pode deixar a morte de uma pessoa ser esclarecida por um auto, porque o auto é a versão unilateral de uma parte qualificada, que sabe corromper provas. Após um confronto com a polícia, geralmente num bairro humilde, de noite ou de madrugada, ninguém mais passa naquele local, o policial é o dono da situação. No auto, você declara a legítima defesa do policial antes de declarar que houve um homicídio. O que é valorado não é o fato mais grave, a morte, mas a conduta do morto. Muitas vezes, a delegacia nos manda um inquérito para apurar a resistência; mandamos refazer, para que seja feito um inquérito de homicídio. Se não temos pena de morte na Constituição, não podemos ter pena de morte nas ruas — afirma o promotor José Emmanuel Lemos, coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do MP da Bahia.

Consultora do Banco Mundial e pesquisadora da área de segurança pública, Adriana Loche diz que a dificuldade de controle da letalidade policial no Brasil é em grande medida explicada pela autonomia que as polícias militares têm, “em parte porque são militarizadas, em parte porque há o espírito de corpo da instituição”:

— Por serem militarizadas, as PMs pensam: como um civil, que no caso é o secretário de Segurança, vai comandar militares? Isso faz a instituição se fechar. E, no caso das investigações das corregedorias da PM, o problema é que elas vão punir o que acham que seja uma violação; e, na sua visão, um policial matar em confronto não é considerado violação, é visto como alguém se defendendo.

Pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Ignacio Cano lembra que muitas vezes estas mortes são invisíveis.



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