sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Faroeste à brasileira - O Cinema Nacional & O Ciclo do Cangaço


http://www.guesaerrante.com.br/2013/4/30/faroeste-a-brasileira---o-cinema-nacional--o-ciclo-do-cangaco-4439.htm



Por Sergio Brandão*




A história do Brasil tem no Ciclo do Cangaço suas mais épicas, bárbaras e sangrentas passagens, com a luta de homens e mulheres, saqueadores, assaltantes, desassistidos em geral, bandos famosos, perseguições entre personagens imortais e as autoridades constituídas pelos coronéis, todos se digladiando pela sobrevivência, em meio à caatinga, seca e miséria extrema da região nordestina, entre os fins do século XIX e meados dos anos 40, do século XX.

O Cinema Brasileiro encontrou nas histórias, advindas da mitologia do cangaço, rico material, para contar, estilizar e criar personagens e situações que colocam os filmes sobre cangaceiros e o Nordeste, em geral, como um subgênero, à parte, na nossa historiografia fílmica. Esse subgênero, guardadas as devidas proporções e comparações, se mescla, ecoa momentos e vislumbra aparências com o Faroeste norte-americano e seu mundo mítico. O mencionado vislumbre, com o gênero clássico do cinema narrativo estadunidense, por aqui foi chamado em diversos artigos de estudiosos de nossa filmografia de: “Nordestern”, numa alusão ao formato clássico do fazer cinema americano. Mas, em verdade, nosso gênero, que versa sobre o cangaço, traz originalidades e filmes muito particulares, que dialogam com um novo formato de fazer cinema. Ainda mais, colocam uma nova maneira de pensar o fazer cinematográfico e, nos legou a presença de um dos nossos maiores pensadores-cineastas, Glauber Rocha, o próprio, um expert em montar o subgênero do “nordestern” e subvertê-lo em prol do seu modus operandi de fazer cinema, o já famoso “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, compondo o cinema de guerrilha, a prática da produção cinética terceiro mundista, além de ser esse tipo narrativo, desconstruído de um gênero formador da história das cinematografias, o possível legado do Brasil e dos países da periferia ao cinema muito além dos seus gêneros clássicos constituídos “made in hollywood”.

Na nossa filmografia, podemos destacar a presença de uma obra, O Cangaceiro, de Lima Barreto, produzida em 1953, nos estúdios da Vera Cruz (a experiência de cinema feita por aqui, nos moldes da indústria hollywoodiana, que fracassaria logo depois) ainda envolta na forma e caracterização do cinema de gênero, porém revolucionária, na época, ao trazer a mitologia do mundo do cangaço, perpassada por uma história de amor, que dialogava com todos os públicos. Bateu recordes de bilheteria e levou o cinema nacional a obter um prêmio especial, em Cannes, como melhor filme de aventura, uma Palma de Ouro honorária, naquele ano de 1953. O Cangaceiro foi o detonador de todo o gênero do “nordestern”, no Brasil. Não foi o primeiro filme sobre o cangaço, entretanto nasceu histórico e colocou o cinema de nosso país no mapa internacional, provocando um encantamento, uma curiosidade dentre os estrangeiros, os quais se perguntavam que terra era aquela de tipos rudes, violentos, foras da lei, no entanto, românticos, musicais, líricos, trágicos e miseráveis. Ainda hoje o tema musical da Mulher Rendeira e a trilha sonora são arrebatadores.

Não se passou muito tempo e o ciclo do cinema sobre o cangaço estava aberto e, entre fins dos anos 50 e até a metade dos anos 60, muitos filmes sobre os personagens do bmeio foram feitos. Alguns enfocavam a vida dura dos cangaceiros, outros a caçada das “volantes”, como eram chamadas as patrulhas do governo especializadas em ir atrás dos bandos de cangaceiros. Depois os temas principais se fixaram em Lampião, seu bando, seu amor por Maria Bonita e seus companheiros em fuga. Desse enfoque em Lampião, nasceram clássicos como: Lampião, o rei do Cangaço, de Carlos Coimbra; As Aventuras de Corisco e Deus e o Diabo na Terra do sol, de Glauber Rocha. Tais filmes consolidaram o “nordestern” e capturaram as imagens da região do Nordeste para o mundo em sua mística religiosa, sua ilusão de poder, sua miserabilidade constante e sua sangrenta história de confrontos pela sobrevivência.

Em especial, notamos que em Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1963, Glauber Rocha realizou uma obra imortal, presente no que os críticos daquele momento histórico chamaram de “trilogia do sertão”, a qual cimentou a primeira fase do movimento cinemanovista, brasileiro, no início dos anos 60. A trilogia do sertão narrava em filmes como: Vidas Secas, de 1963, dirigido por Nelson Pereira dos Santos; Os Fuzis, de 1963, bdirigido por Rui Guerra, e Deus e o Diabo, de Glauber, a dura vida do sertanejo nordestino em suas várias facetas, na seca, na fome e miséria, na luta social, na religiosidade, na violência entre seus pares, no coronelismo e na vingança do cangaceiro. Esses filmes e o ano de 1963 podem ser considerados como essenciais na formação do cinema novo e no alcance mundial, em relevância, da cinematografia brasileira. Glauber Rocha seria premiado em Cannes por Deus e o Diabo, Nelson Pereira dos Santos foi premiado em Cannes por Vidas Secas e Os fuzis levou prêmio no festival de Berlim.

Especificamente nos detendo um pouco mais em Deus e o Diabo na terra do Sol, Glauber Rocha nos lega um filme primoroso na narrativa entrecortada, misturando o mito religioso do sebastianismo, a caçada ao cangaceiro Corisco e sua luta, social, com ecos de aula marxista a nossa volta. Mas, também, um romance clássico é devidamente proposto dentre o cangaceiro e sua amante, com direito a cenas inesquecíveis ao som da trilha sonora de Villa Lobos e suas Bachianas (o beijo demorado em travelling circular entre os personagens de Othon Bastos e Yoná Magalhães emoldura esse romance). Ainda mais, temos a presença de uma linguagem moderna, até aquele ponto, em matéria de estrutura cinematográfica demonstrada, o que é exemplificado nos jump cuts (cortes de cenas bruscamente), narrativa entrecortada, desconstrução de um gênero clássico, trilha sonora moderna, temas sinfônicos, musicas regionais e a junção de uma montagem errática, proposital, nos garantindo a subversão completa pretendida por Glauber Rocha. O cinema de cangaço alcançava nesse instante, com Glauber, um grau maior em sua concepção e juntava os mitos dos guerreiros cangaceiros, a caçada a eles, o extremo da religiosidade, a crítica social mais virulenta feita ao período histórico e o desvario de criar cinema em torno do caos. Tudo isso em conjunto realça o que era a energia cinematográfica do diretor Glauber Rocha.

Ainda nos anos 60, Rocha voltaria ao tema do cangaço, da violência no Nordeste e da caçada em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969. Nessa película, o personagem de Antônio das Mortes, já visto no filme Deus e o Diabo, volta como um demônio perseguidor de todos os ditos fora da lei no nordeste místico pintado por Glauber. O Ator Maurício do Valle personifica a perfeição Antônio das Mortes e carrega consigo a força do aparelho repressor de uma sociedade que mutila e destrói todos os elementos considerados subversivos ou ofensivos à ordem miserável estabelecida nas terras secas nordestinas, e acima disso, o Dragão da Maldade se identifica ainda mais com o gênero do faroeste, pois tiros e balas são disparados em profusão nesse filme.

Voando no tempo e espaço da imagem e do som, temos, nos anos 90, na época do cinema da Retomada brasileira, exemplos maravilhosos de películas feitas dentro da narrativa sobre o cangaço. Podemos destacar os filmes O Baile Perfumado, de 1996, da dupla, Lírio Ferreira e Paulo Caldas e Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariri.

Em O Baile Perfumado o que nos é mostrado é um Nordeste pop, um filme autêntico, com uma originalidade presente na trilha sonora mesclada de arranjos modernos, a cargo de Chico Science, mais ritmos tradicionais, com um verniz pós-moderno, nas rabecas da banda Mestre Ambrósio, tudo em conjunção, a fim de contar uma história mais próxima da verdade histórica sobre os últimos momentos de Lampião, Maria Bonita e seu bando, quando foram fotografados e desmistificados no seu dia a dia por um fotógrafo de ascendência libanesa, enquanto fugiam caçados por volantes virulentas nas campinas e caatingas de um Nordeste com aparências renovadoras por mais contraditório que as imagens apareçam.

O Baile Perfumado é um filme lírico, porém é, acima de tudo, um retrato original e carregado de nordestinidade e modernidade pernambucana (pois feito a cargo do então ascendente cinema regional de Pernambuco) sobre Lampião e sua influência até os dias de hoje, sua eterna figura contraditória que passeia entre o heroico e o banditismo mais voraz.

Rosemberg Cariri nos conta uma história mais comum, narrada em tom de realismo duro, que coloca o ponto de vista feminino mais acentuado na construção do ideário cangaceiro da região. A vida de Dadá e seu romance, forçado de início, com Corisco é o engajamento da história e depois as fugas, a sanguinolência do mundo do cangaço e a sobrevivência de heroina Dadá é o material maior praticado pelo filme. Em Corisco e Dadá, a idealização do cangaceiro passa longe e o diretor se atém mais à realidade crua dos fatos, o que não deixa o filme mais obscuro, pois é mais um filme “ardente” e colorido sobre o Nordeste e suas personagens, do ponto de vista estilístico pretendido pelo autor-diretor.

Aqui, cabe uma lembrança, até mesmo na seara dos filmes pastelão, da trupe dos Trapalhões, o subgênero do “nordestern” encontrou abrigo. Em 1983, foi feito o O Cangaceiro Trapalhão, filme onde Didi e seus companheiros satirizam o cangaço e Lampião, em clima de aventura, tendo os clássicos O Cangaceiro e a minissérie global do ano anterior, Lampião e Maria Bonita, como inspiradores fundamentais para a comicidade pastelã que detona todos os tipos e figuras de um Nordeste místico, paspalhão, aventuresco, mitológico e, por que não dizer, religioso, ao apelar ao Padre Cícero e ao tom de romantizar a participação de Lampião na película dando matiz de herói ao mito.

Vale ressaltar que as produções nacionais sobre o cangaço se seguiram às dezenas, durante os anos 60, 70 e 80, do século passado. E, inclusive, ao tempo das ditas pornochanchadas foi feito um pastiche erótico de mau gosto intitulado As Cangaceiras Eróticas, de 1974. Tudo para explorar as possibilidades do subgênero e rebaixá-lo. Por conta disso, podemos lembrar, também, do remake, ridículo, feito de O Cangaceiro, no início do século XXI, dirigido por Aníbal Massaíni Neto, descendente do produtor do original, que pareceu beber na fonte das pornochanchadas e criou um terrível engano cinematográfico, desleixado, cheio de nudez apelativa, cenas sem nexo e sem ação com nenhum propósito, a não ser o de colocar em cena a maior quantidade de atores famosos (Paulo Gorgulho e Luísa Thomé, por exemplo) nus e se relacionando num nordeste longe da realidade e sequer perto de aparentar ser um filme do estilo “nordestern”, enfim um desserviço completo ao cinema nacional.

Esse gênero, genuinamente brasileiro, criado na inspiração, entretanto muito mais profundo na construção e linguagem cinematográfica pretendida, do faroeste comercial hollywoodiano norte-americano, se notabilizou em mostrar a região Nordeste ao mundo, suas dificuldades, sua valentia, suas histórias violentas e perseguições e seus personagens mitológicos, comparáveis aos mitos fundadores da nação estadunidense, pois se lá eles têm um Jesse James e um Wyatt Earp, por aqui temos Lampião e Maria Bonita, Corisco, o diabo loiro, por sinal título de outro filme do ciclo do cangaço nos anos 60, e toda uma infinidade de personagens reais e imaginados, os quais contam nossa miséria, nossa história, nossa nacionalidade, nossa identidade nacional e regional, nossa fibra e nossa covardia.

*Sérgio Brandão é cineasta e professor de História do Cinema

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