Por Luiz Paulo Juttel e Marina Mezzacappa
10/05/2008
23 de abril de 2008, bairro de Quintino, zona norte do Rio de Janeiro.
Mais de 50 mil fiéis se reúnem na Igreja local em comemoração ao dia do
padroeiro, São Jorge. A segurança do evento é supostamente garantida pela
milícia, que se instalou nas favelas próximas em janeiro deste ano, após
expulsar os traficantes. Exigência para a realização da festa: entre R$ 20 e R$
50 por barraca montada. Ironicamente, os festejos pelo dia do santo guerreiro
retratam a entrada de mais um ator na dinâmica de um sistema paralelo de
“segurança” e punição que se estabeleceu no Brasil e inclui também pistoleiros,
grupos de extermínio e justiceiros.
“Essas formas de punição veladas, bem como o poder paralelo que existe
atualmente no Brasil, crescem e ganham força diante da ausência do Estado”,
declara Roberto Porto, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de
São Paulo e integrante do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime
Organizado (Gaeco). “Temos uma precariedade absurda em termos de segurança
pública. A popularização da ação dos grupos de extermínio, por exemplo, está
diretamente vinculada à demanda por segurança e à privatização de sua oferta
feita pelo monopólio ilegal/legal dos assassinos”, completa o sociólogo José
Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Para ele,
as relações de dominação, desigualdade e discriminação presentes na nossa
sociedade também são terreno fértil para a expansão das lógicas do "bandido bom
é bandido morto" e da punição não-estatal.
Segundo Porto, o Estado deixou de se posicionar diante do poder paralelo
ao longo dos anos. “Preferiu negá-lo, temendo admitir a sua ineficiência”,
afirma. Para o sociólogo e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da
Universidade Federal do Ceará, César Barreira, o Estado vem mudando essa postura
histórica de conivência com os grupos que ameaçam seu monopólio legítimo no uso
da violência, como os matadores de aluguel. “Essas práticas deixaram de ser
funcionais para o Estado”, avalia, enfatizando que muitos políticos e famílias
influentes tiveram vínculos estreitos com as formas privadas de punição. Em
fevereiro, um dia após a prisão de dez policiais acusados de participação em um
grupo de extermínio, o governador de São Paulo, José Serra, admitiu a existência
de organizações desse tipo dentro da Polícia Militar do estado e declarou “não
ser fácil combatê-los”.
História e lógica do extermínio
Nos anos 50, grupos de extermínio surgiram no Brasil sob a forma de
“esquadrões da morte” que vingavam o assassinato de policiais por bandidos.
Durante a ditadura militar, tais grupos ganharam conotação política ao eliminar
adversários do regime vigente. Logo depois, vincularam-se ao crime e, na década
de 80, passaram a ser conhecidos como grupos de extermínio, tendo como alvo
preferencial os meninos de rua das grandes cidades. A ligação mais recente foi
com os traficantes. “O objetivo principal agora é eliminar membros de facções
rivais”, revela Umberto Sudbrack, desembargador da 5 a Vara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul.
Além dos grupos de extermínio, um novo agente agregou-se nos últimos anos
ao sistema punitivo não-estatal brasileiro. Trata-se das milícias, grupos
formados por policiais, aposentados ou na ativa, bombeiros e outros indivíduos
que invadem as favelas e bairros do Rio de Janeiro, expulsam os traficantes de
drogas e passam a cobrar uma taxa de moradores e comerciantes para garantir sua
suposta proteção. Esses grupos mantêm a ordem nas favelas através do assassinato
de traficantes, assaltantes, mendigos e meninos de rua. “As milícias encontraram
na utilização da execução sumária, enquanto política pública de segurança, o
melhor dos cenários possíveis”, pontua Alves. “Eliminar pobres em áreas
periféricas do Brasil tornou-se algo muito rentável política e economicamente”,
completa.
A lógica que impulsiona as atividades criminosas das milícias e grupos de
extermínio é semelhante a de pistoleiros e justiceiros. “Eles acham que cumprem
o papel de promover uma ‘assepsia social' que o Estado ineficiente deveria, mas
não vem fazendo”, diz Barreira. “É uma lógica maniqueísta, de eliminar
fisicamente os indesejados, os maus elementos, da sociedade”, concorda Sudbrack.
Pistoleiros, justiceiros e vingadores
Antes do surgimento de grupos organizados de criminosos que executam quem
causa problemas, a eles ou à sociedade como um todo, já existia a figura do
matador de aluguel. “Historicamente, o serviço desses matadores não era
contratado em casos de conflito passional. Nessas situações, a punição era
levada a cabo pela própria pessoa que se sentia desonrada”, explica Barreira.
Mas esse quadro mudou no decorrer do século XX. A pistolagem, antes restrita ao
meio rural e político, chegou à cidade como uma possibilidade de resolução dos
mais diversos conflitos interpessoais e viu o perfil dos mandantes
aumentar.
Outros atores na dinâmica da punição são os justiceiros e vingadores.
Enquanto a ação do pistoleiro é motivada pura e simplesmente pelo retorno
financeiro e não se constitui de valores, a do justiceiro baseia-se no conceito
de limpeza social e a do vingador no de limpeza da honra (própria ou de uma
pessoa próxima e querida). “Todos eles se consideram no direito de matar alguém
que tenha cometido um ‘delito' não passível de punição pelo Estado como, por
exemplo, o adultério”, afirma Barreira.
Apesar de muitas semelhanças, o modus operandis desses atores
difere. O pistoleiro geralmente intenciona apenas o resultado final, matar a
vítima, por isso procura realizar seu trabalho de forma rápida, sem causar muita
dor, disfarçada, para evitar o seu reconhecimento, e sem revelar o mandante. “Já
o justiceiro pode aplicar tortura sobre suas vítimas”, diz Barreira. Sua
intenção é não apenas matar quem está sendo punido, mas lhe causar sofrimento e
usá-lo como exemplo, publicizando o feito.
Outro aspecto interessante é a consciência que essas pessoas têm sobre a
possibilidade de virem a ser punidas pelo Estado. Segundo Barreira, pistoleiros
consideram que suas ações violentas merecem punição, mas acreditam que ela deve
ser maior para o mandante da execução, já que ele é o autor intelectual do
crime. Justiceiros e vingadores, por sua vez, acreditam que não são passíveis de
punição porque estão apenas eliminando maus elementos da sociedade.
Nos presídios
Formas de punição não institucionalizadas não se restringem à sociedade
livre. Dentro dos presídios, impera um rígido código de ética que, quando
quebrado, gera repreensões violentas. Pequenas atitudes, como agir com má
educação contra um companheiro de cela, observar a visita alheia ou ser
considerado inconveniente pelos outros presos, podem levar a surras e outras
formas de violência que, às vezes, terminam em internação hospitalar, coma e até
mesmo morte.
“Uma vez, um cara ficou ‘secando' <olhando> a visita de outro
preso. Quando acabou o tempo de visita, ‘furaram' <esfaquearam> ele. Ficou
12 dias em coma”, conta Rodrigo Corrêa Goulart, estudante universitário e
ex-presidiário, condenado em 2006 a um ano e 11 meses de prisão por tráfico de
drogas. O estudante cumpriu pena em um pequeno presídio do interior de Santa
Catarina. Nem por isso deixou de vivenciar situações de duras punições
perpetradas pelos próprios presidiários. “Toda semana rolava um estresse. Tinha
preso que apanhava, que era impedido de comer, que ficava de joelhos um tempão,
que tinha que desfilar de saia e calcinha dentro da cela, ou era até mesmo
estuprado por companheiros”, comenta Goulart.
O castigo, segundo ele, sempre é definido por aquele que está há mais
tempo no presídio: “Esse é quem manda”, revela o estudante. Nos grandes
presídios do país, em especial de São Paulo e Rio de Janeiro, existe o agravante
das facções criminosas, como o PCC. “As facções dominam o sistema prisional.
Elas se tornaram uma grife no mundo do crime, na qual o preso inserido ganha o
respeito dos outros”, explica Roberto Porto. Segundo o pesquisador, esse
respeito é vantajoso para o preso na medida em que o Estado não tem condições de
assegurar sua segurança.
Dentro dos complexos prisionais de São Paulo, o chefe de uma facção
criminosa é chamado de “piloto” e exerce liderança sobre os demais. Sua voz de
comando se estabelece graças ao trabalho dos “disciplinas”, detentos
encarregados de aplicar o castigo a quem agir contra os interesses da
facção.
Nos presídios, alguns criminosos são mais mal vistos do que outros, de
acordo com o crime que cometeram. Estupradores e homens que espancam mulheres,
crianças ou idosos, por exemplo, costumam ser isolados dos demais presos para
garantir sua integridade física.
Mudança de paradigmas
Para César Barreira, os valores defendidos pelos presidiários e outros
agentes não-estatais de punição são, de certa forma, compartilhados pela
sociedade, o que “legitima” muitos atos de punição junto à população. O código
de honra dos presos diz que punir quem estupra ou violenta mulheres e crianças é
uma forma de proteger suas esposas e filhos que estão do lado de fora da cadeia.
“Os linchamentos mostram como esta lógica de punição se amplia para a sociedade
em geral. Existe certa ambigüidade por parte da sociedade em relação a essas
práticas punitivas. Ela ao mesmo tempo nega e aceita tais práticas”, atesta
Barreira.
Segundo ele, é preciso mudar o arcabouço social que valoriza pessoas
corajosas, valentes, que “não levam desaforo para casa” e resolvem os conflitos
não pela palavras, mas por meio da violência. Alves destaca ainda que “a
permissividade da execução sumária praticada contra grupos sociais identificados
como executáveis se alimenta de todo o preconceito, segregação, desqualificação
e desumanização praticados tanto na esfera familiar como escolar”. De acordo com
ele, é necessário um esforço de dar rosto, voz e compreender quem são essas
pessoas, “simplesmente rotuladas de vagabundos, marginais, a serem
abatidos”.
Barreira acredita que só se pode reverter a aceitação dessas práticas de
punição veladas por meio do trabalho educativo. “É preciso ter total clareza de
que apenas o Estado tem o direito de aplicar punições e qualquer ato que ocorra
fora desse anteparo estatal deve ser combatido”, pontua. Para isso, é importante
que a população retome a confiança no Estado e na polícia, que, por sua vez,
precisa passar a exercer sua funções de maneira mais satisfatória.
Já Sudbrack lembra que “a desigualdade social brasileira é o fator
determinante da criminalidade e da repressão que os autores desta sofrem”. Para
ele, o combate a essa realidade requer a resolução de problemas básicos, como a
concentração de renda, e a formulação de políticas públicas que visem à promoção
de reformas sociais. “Apenas a vontade política, reforçada por processos de
controle supranacional, pode combater violações de direitos humanos, como o
extermínio de pessoas”, conclui.
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Boas vindas e boa leitura é o que desejamos a todos que acessarem este blog, aqui trataremos de temas variados, mas de interesse público e do público: direitos humanos, educação, cultura, segurança pública, política etc.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Justiça com as próprias mãos
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