Para o governador de São Paulo, José Serra, que aprovou uma nova forma de
monitoramento de presos em abril deste ano, sancionando a Lei Estadual
12.906/08, esta punição “não
vai constranger ninguém”. Ao contrário, vai melhorar o controle de 20 mil
detentos em regime semi-aberto e diminuir os custos. Serão usados para o
controle de réus condenados por terrorismo, homicídio, estupro, tráfico de
drogas, tortura, entre outros. Custarão, de acordo com algumas estimativas, 600
reais por dia para cada preso. Guardas especiais? Tropas de elite? Nada disso.
Serão pedacinhos de plástico, metal e silício do tamanho de uma pulseira. Aliás,
serão mesmo pulseiras ou tornozeleiras eletrônicas conectadas com a rede GPS
(Global Positioning System), capazes de informar 24 horas por dia a posição de
um condenado em semi-liberdade.
Já experimentados no estado da Paraíba e aprovados também no Distrito
Federal, esses vigias eletrônicos causaram elétricas polêmicas, não só pelas
questões éticas que levantam. Muitos políticos, tanto no governo, quanto na
oposição, gostaram. Outros disseram: são ilegais. Porque, de acordo com alguns
promotores e desembargadores, só uma Lei Federal pode alterar
as formas de restrição de liberdade. Pela constituição brasileira, somente o
Congresso pode votar leis penais, declarou Sérgio Salomão Shecaira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária, braço consultivo do Ministério da Justiça.
Seja como for, essa idéia de controlar condenados por ondas
eletromagnéticas representa uma enésima técnica para vigiar e punir quem fez
algo proibido ou condenável. Uma opção numa lista milenar. Porque o castigo é
antigo como a humanidade, e mutável como as nuvens no céu tropical.
Em lugares e momentos históricos diferentes, a punição foi entendida,
motivada e aplicada em formas tão diversificadas quanto a fantasia humana. Os
imperadores romanos puniam os crimes mais graves (tipicamente, a rebelião contra
eles) com a crucificação, a queimadura ou a luta na arena. Na Europa medieval,
fundada na religião, crimes da máxima gravidade eram a heresia e a bruxaria, que
mereciam penas terríveis e tristemente famosas. Os bandidos eram, por vezes,
punidos por esmagamento com uma grande roda. No século XV, o conde Vlad III
Drácula era chamado “Tepes”: em romeno, o “empalador”, pelo tremendo castigo
que, se dizia, infligira a dezenas de milhares de inimigos, na maioria
muçulmanos.
A lista das punições inventadas pelos soberanos ou pelo povo preencheria
uma lista telefônica: multas, exílio e banimento, perdas dos bens ou dos
direitos civis, flagelação, açoitamento, pública humilhação, penitência, trabalho forçado, serviço
comunitário, mutilação ou, ainda, nos casos piores, linchamento, fogueira,
fuzilamento, lapidação, enforcamento, esquartejamento, afogamento, garrote,
injeção letal, cadeira elétrica, decapitação....
Penas de todas as cores
No entanto, “não é só a pena que muda”, explica Andrei Koerner, do
Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp, “mas a lógica das regras sociais que determina o que é
obrigatório, permitido, proibido. Aquilo que hoje consideramos ‘crime', noutra
época ou sociedade é conduta obrigatória”.
Os exemplos são muitos. Autores que outrora teriam sido considerados
heréticos (e brutalmente perseguidos pelos Papas na época da Inquisição), hoje
criam mercadorias de grande consumo na indústria cultural (em forma de filmes e
romances, como Código da Vinci). Por outro lado, em alguns países
islâmicos, conteúdos análogos são, ainda hoje, considerados passíveis de pena
capital. Na Grécia de Platão, as relações homossexuais masculinas, até mesmo de
um adulto com um adolescente, eram consideradas uma forma nobre de amor. Na
Idade Média, pelo contrário, a sodomia foi freqüentemente punida com a morte na fogueira. De outro lado, o estupro sofrido pelas
mulheres era em geral considerado um crime contra a propriedade (ou contra a
autoridade paterna) e não contra a pessoa. Como conseqüência, quando a vítima
pertencia à aristocracia, o castigo podia ser violento e exemplar, mas quando se
tratava de uma mulher pobre, a punição era apenas monetária.
Para Jonatas Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco, vários
estudiosos (entre outros, o sociólogo Émile Durkheim e o filósofo Michel
Foucault) enfatizaram que a punição varia nas sociedades, bem como o que é
considerado crime: crime é aquilo que julgamos como tal. De acordo com Ferreira,
Foucault fala de certa tolerância que a sociedade francesa rural do século XVIII
teria para com práticas que hoje associaríamos claramente à pedofilia. “Segundo
essa mesma linha de raciocínio”, continua o sociólogo, “é possível pensar por
que a eutanásia é considerada em muitos países como um crime, mas a negligência
para com as desigualdades sociais, que resultam em desnutrição, endemias, surtos
de dengue não recebem o mesmo tipo de resposta social”.
Tal como as penas, as motivações para a punição são muitas e mudam com o
contexto social. Antigamente, a punição era, substancialmente, uma vingança
(da vítima, do soberano ou da coletividade contra o réu). Depois, a mesma
passou a ser chamada de “retribuição”: o criminoso merece receber, em
retaliação, algo em troca do que fez com suas vítimas (como na Lei do
Talião). Mas foram inventadas muitas outras motivações para o castigo. Por
exemplo, a punição serviria como educação (para que as pessoas aprendam
como funcionam as normas sociais), como intimidação (para que,
conscientes do preço que podem pagar, os indivíduos decidam comportar-se
adequadamente), como reparação (para dar ao réu a possibilidade de
remediar o estrago que fez, por exemplo trabalhando para a comunidade), como
incapacitação (para impedir uma reincidência do criminoso, afastando-o
da sociedade), ou ainda, o que foi moda especialmente a partir do Iluminismo,
reabilitação (ou seja, reeducar, dar a possibilidade de se arrepender,
de maneira que o próprio criminoso não queira mais agir de forma
inapropriada).
Punição “mais humana”?
No entanto, apesar do repúdio moderno contra a prática da vingança e do
horror que sentimos ao ouvir a descrição dos suplícios antigos, a idéia de que a
punição antigamente fosse irracional e selvagem, para depois ter ficado “mais
humana” com o surgimento das penitenciárias e da afirmação da noção de “direitos
humanos”, é ingênua. Primeiro, porque as sanções monetárias (e outras formas
“leves” de punição) existem desde a Antiguidade. Segundo, porque, mesmo naquele
período, as punições extremas eram utilizadas com certa cautela. Terceiro,
porque o moderno sistema “humanitário”, que aprisiona milhões de pessoas
submetendo-as a condições de humilhação e, em muitos casos, de violência e
tortura, não é automaticamente mais “racional” ou capaz de causar menos
sofrimento. De fato, as formas extremas de punição nunca foram abandonadas:
mudaram de endereço e de nome. Junto com multas e prisões, ainda existem, em
todos os países do mundo, inúmeros castigos violentos, para adultos e crianças:
chicote, palmadas, tortura, execução por esquadrão da morte.... Para Ana Lúcia
Pastore Schritzmeyer, do Departamento de Antropologia, da Faculdade de Filosofia
Letras e Ciências Humanas da USP, “diferenças e mudanças nas formas de punir não
se deram (e não se dão) segundo uma única lógica evolutiva, que permitiria
comparar formas menos e mais ‘aprimoradas' ou mais ‘justas' de punição”.
A pesquisadora, que também é vice-presidente da Associação Nacional de
Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP), explica que hoje muitos
estudiosos refutam a visão segundo a qual a vingança seria uma reação “selvagem
e arcaica” a uma infração, pondo em risco a ordem social, ao passo que a “pena
civilizada” seria uma reação do corpo social benéfica ao conjunto. “Sistemas
penais modernos, ocidentais, dentre eles o brasileiro”, afirma Schritzmeyer, “
comportam ‘vinganças pessoais ou coletivas', sendo fortemente marcados por
relações de poder e por discriminações étnicas, etárias, de gênero etc. Mudanças
só podem ser entendidas em relação a seus respectivos contextos”.
“Vigiar e punir”
Em um de seus trabalhos mais celebrados, Vigiar e Punir (de
1975), o filósofo Michel Foucault trata justamente de como, ao longo da história
ocidental, a lógica e as técnicas da punição mudaram. Nos séculos XVII e XVIII,
diz Foucault, o poder do soberano se explicitava, de maneira predominante, como
o poder absoluto de “tirar a vida”. Para que o povo testemunhasse este poder, a
punição era pública e espetacularmente violenta. Mais tarde, segundo Foucault,
apareceu um tipo de “economia de poder” em que não era importante somente o
suplício, o castigo exemplar, mas sobretudo formas sutis de criar “corpos
dóceis” cujo trabalho pudesse ser disciplinado e aproveitado. Torna-se
importante inventar formas positivas de normalizar, incentivar, regular a vida
da população e a essas formas associam-se instituições como prisão, hospital e
escola.
Ana Lúcia Schritzmeyer ressalta no entanto que Foucault não afirma serem
as prisões uma evolução positiva em relação aos castigos corporais e
espetaculares. “O que ele faz, brilhantemente, é demonstrar como as prisões (e
também hospitais, escolas e fábricas) resultam de um novo modo de conceber um
controle eficaz de corpos e mentes”.
Para Jonatas Ferreira, Foucault entendia que o poder já não era uma
questão de soberania, mas de administração dos corpos, da vida biológica. “Os
governantes – diz Ferreira – já não precisavam recorrer ao espetáculo da morte,
ao terror, para governar. O poder estava disperso nas práticas diárias de
controle sobre a vida biológica”.
Ainda segundo Ferreira, embora a reabilitação e a disciplina
desempenhassem um papel importante na racionalização da vida nas sociedades
ocidentais, “formas tradicionais de punição continuaram a existir”. Basta pensar
a pena de morte: abandonada na França apenas durante o século XX, ainda adotada
em alguns estados dos EUA, desejada por muitos no Brasil. “Seria interessante”,
afirma Ferreira, “contrastar, por exemplo, o discurso reabilitador do sistema
penitenciário brasileiro e a sua realidade efetiva”.
Guantánamo na sociedade dos direitos
universais
De fato, ao mesmo tempo em que os castigos extremos e as torturas são
descritos como algo do passado, formas de punição “clássica” reaparecem em novos
contextos. O objetivo de prisões como a de Guantánamo (prisão norte-americana em Cuba) parece ser, entre
outros, de demonstrar que o poder de castigar o terrorismo deve ser absoluto e
impiedoso. Ao mesmo tempo, em muitos regimes islâmicos, a punição corporal e os
suplícios são parte da lei.
“A guerra contra o terror intensifica uma combinação entre ação militar e
policial”, comenta Koerner. Em princípio, são duas formas de ação diferentes,
pois a primeira destina-se à vitória contra um inimigo externo, organizado em
força armada, enquanto a outra teria a finalidade de manter a segurança interna,
tendo como seus objetos e destinatários os próprios cidadãos e utilizando a
força apenas como recurso extremo. “O objetivo da destruição do inimigo
estende-se a seu julgamento e punição”, continua o pesquisador. “O terrorista é
um inimigo ao mesmo tempo interno e externo. O risco que se lhe atribui passa a
justificar ações antecipadoras, para cuja eficácia considera-se necessário
romper-se com interditos fundadores da ordem constitucional contemporânea, tais
como o respeito absoluto à integridade física dos indivíduos e a proteção de
suas liberdades civis e políticas”.
Disciplina e controle
Além disso, hoje outras técnicas parecem também ter importância. Andrei
Koerner explica: “Fala-se hoje em sociedade de controle, ou pós-disciplinar. A
punição é pensada em função da retribuição do mal e da neutralização do
indivíduo que cometeu o ato criminoso. Ampliam-se formas de monitoramento das
condutas, a fim de prevenir atos criminosos e evitar os seus efeitos”. Os
projetos de “regeneração” dos condenados ficam, em muitos casos, em segundo
plano, e se dá mais importância a “uma lógica da antecipação que se aplica em
campos como as operações financeiras, a internet e, também, as pulseiras
eletrônicas que se colocam nos condenados em liberdade provisória”. O controle
dessas práticas torna-se, segundo Koerner, mais difícil: a lógica da segurança
amplia o mandato das autoridades policiais e as demandas de resposta imediata
dessas autoridades. Além disso, há uma privatização do controle dos espaços
públicos e privados.
Por outro lado, para Jonatas Ferreira alguns comportamentos de hoje podem
ter a ver com um certo “prazer em se adequar”. O castigo corporal e a lógica
disciplinadora, diz o pesquisador, dividem hoje espaço com uma forma de controle
em que seguir a norma é fortemente recompensado com honras sociais. “A
zoologização da vida cotidiana em reality shows”, se pergunta Ferreira,
“não é recompensada com a fama meteórica? As dores por que passam aqueles que se
submetem a cirurgias plásticas cosméticas, dietas miraculosas, exercícios
físicos, não são recompensadas pelo olhar público?”.
Ao mesmo tempo, para Ana Lúcia Schritzmeyer, tecnologias de punição
aparentemente novas, como a castração química para os pedófilos, são “ reedições
de velhas (e falidas) formas de pensar a punição, segundo as quais os condenados
são como doentes incuráveis que devem extirpados do corpo social ou mantidos à
sua margem”. Para a pesquisadora, hoje predomina um tipo de sistema penal
“excessivo, inflacionário e pouco eficaz porque se distanciou da moral e é menos
interiorizado”. Um sistema cheio de ficções que ocultam “preconceitos,
privilégios e conflitos sociais que estão na própria origem e manutenção tanto
de penas (oficialmente predominantes) quanto de tortura, castigos físicos e
morais (oficiosamente predominantes)”.
A pulseira eletrônica suscita uma discussão porque é mais um elemento no
labirinto complicado do vigiar, do punir, do autovigiar e, às vezes, auto-punir.
Um elemento em que se entrecruzam as histórias velhas e novas que a humanidade
inventa para explicar os castigos que inflige a seus
membros.
|
Boas vindas e boa leitura é o que desejamos a todos que acessarem este blog, aqui trataremos de temas variados, mas de interesse público e do público: direitos humanos, educação, cultura, segurança pública, política etc.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Da fogueira à pulseira eletrônica
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário