sábado, 26 de fevereiro de 2011

tortura é crime imprescritivel

Tortura é crime imprescritível!
APROPUC-SP

Rosalina de Santa Cruz Leite
Hoje, mais do que nunca, a tortura aos presos políticos da ditadura militar de 1964 a 1985 voltou ao centro do debate na sociedade brasileira, tomando espaço na mídia, revelando profundas contradições do governo Lula e da Lei de Anistia, provocando novas e velhas indignações e nos mostrando que ainda estamos longe de ter instrumentos de apuração dos fatos. Não por revanchismo, mas para revelar e esclarecer o que de fato aconteceu e responsabilizar quem a praticou, considero este momento muito importante para refletirmos sobre o Estado repressor e classista que temos.
Parto do princípio de que a prática da tortura durante o período em foco não foi em nenhum momento fruto de ações isoladas de indivíduos. Foi parte indissolúvel de uma política oficial de Estado. Hoje, apesar de muitos depoimentos de prisioneiros políticos que constam de livros e pesquisas como o "Brasil: nunca mais", iniciativa da Cúria de São Paulo, dos registros da Comissão de Anistia, da significativa literatura existente sobre o tema, a tortura, ainda, aparece com caráter oficioso, dúbio, como coisa do passado que precisa ser esquecida, na qual é preciso passar uma borracha, pois, afinal, já que houve a Anistia - afirmam os coniventes com tais atos criminosos -, o "perdão" é para os dois lados e a impunidade está legalizada.
A prática da tortura está presente em toda a história do Brasil e foi durante séculos utilizada, em quase todo o mundo, como um exercício de punição e vingança contra aqueles que se insurgiram contra o poder e a força dos soberanos, dos poderosos, da Igreja na Inquisição, dos senhores de escravos no regime escravocrata.
O Estado repressivo brasileiro nunca abriu mão de tal prática, sendo a tortura até hoje uma ação corriqueira de agentes desse mesmo Estado contra, principalmente, os pobres, moradores da periferia que transgridem ou não, mas que se apresentam, pela sua própria condição, como suspeitos. Ao criminalizar a pobreza e tratar os pobres de forma cruel e degradante, o Estado repressor brasileiro, hoje, tem na tortura mais um instrumento de "submeter a classe trabalhadora à exploração do capital, e mantê-la sem revoltas sem o acesso aos direitos mínimos de sobrevivência digna. Logo, a tortura é uma prática que se concretiza não apenas por ações de agentes isolados; trata-se de uma ação do próprio Estado, realizada por agentes seus, que não são apenas protegidos mas que cumprem, sim, ordens superiores, que os acobertam, os valorizam e os premiam, como é o caso do Batalhão de Operações Policiais Especiais - Bope do Rio de Janeiro, apresentado no filme de José Padilha, Tropa de Elite. Trata-se, portanto, de uma concepção de Segurança Pública adotada pelo Estado que se consubstancia em uma política covarde, cruel e criminosa.
Considero, depois de conviver quase diariamente com jovens envolvidos no ciclo da violência, que a tortura faz parte do cotidiano dessa juventude, muito mais do que poderíamos imaginar antes de convivermos, por meio do Projeto de extensão "Refazendo Vínculos", com eles. E, também, como a desqualificação social os leva a internalizarem e naturalizarem e até banalizarem a tortura e a violência que vivenciam. Quando se revoltam, ouvem sempre, de familiares, da comunidade, de alguns técnicos "Por que foi aprontar?", "Dê graças a Deus por estar vivo... da outra vez você morre"; etc.
Por outro lado, sabemos e constatamos que as torturas praticadas contra pobres, negros, considerados "bandidos", "marginais", "foras-da-lei", etc. são percebidas por grandes segmentos de nossa população como necessárias e, portanto, são justificaveis. Isso decorre, em parte, do fato de a população exposta ao medo social provocado pela enorme e terrível violência urbana sentir-se mais protegida ou até mesmo vingada, quando vítima, se os agressores forem cruelmente punidos.
Muitos, se tivessem conhecimento das torturas a que são submetidos adolescentes e jovens ao serem presos, sem falar das torturas praticadas pelos próprios pais e "cuidadores", ficariam - e ficam, quando fatos como esses chegam à mídia - chocados ou, no mínimo, constrangidos. Entretanto, na maioria das vezes, ao saber dos relatos de torturas, as pessoas se horrorizam com a situação, mas logo aliviam suas consciências com as justificativas de que são ações isoladas, que não lhes dizem respeito, e ousam alguns, ainda, defender a tortura para casos excepcionais, com a justificativa de que é preciso, a qualquer custo, conter a violência dos "perigosos", dos "marginais" e dos "bandidos". Quase ninguém pergunta quais são as reais causas de tanta violência e se mais violência não gera mais e mais violências. Não estou falando aqui da elite conservadora consciente; refiro-me à população em geral, que internaliza e reproduz a ideologia dominante.
As causas desta enorme violência precisam ser enfrentadas, mesmo nos marcos da sociedade burguesa, com políticas sociais e econômicas de garantia de direitos, legalização de todas as drogas tornando uma questão de saúde pública o que hoje é confinado pela ilegalidade a uma questão policial repressiva. Essa não seria uma forma mais racional de se enfrentar a questão da violência urbana, garantindo direitos?
Dessa forma, mesmo que os tratados internacionais de Direitos Humanos condenem a tortura como crime hediondo de lesa-humanidade, na realidade a tortura é aceita e defendida, embora não defendida publicamente desde que praticada sobre alguém que merece severo castigo.
É comum ouvirmos a seguinte pergunta, quando se fala de tortura: "Mas o que ele fez?". Como se tal procedimento pudesse ser justificado por algum erro, deslize ou crime cometido pela vítima. Somente em alguns casos - quando se trata de "pessoas inocentes" ou "ricas" - há clamores públicos, o que mostra que para "certos elementos" essa medida até pode ser aceita. Assim, apesar da sua não-defesa pública, a omissão e mesmo a conivência por parte da sociedade fazem com que tais dispositivos se fortaleçam em nosso cotidiano e se consolidem como uma política de Estado. O que não é estranho, pensando-se na correlação de forças presentes na sociedade brasileira.
Durante o regime militar - 1964-1985 -, a tortura garantida pelo arcabouço legal, a Lei de Segurança Nacional, transformou cada brasileiro num suspeito e todos os que contestavam o sistema eram um criminoso, um subversivo, ou um inimigo que precisava ser combatido. Para julgar essa época é preciso compreendê-la, saber como foi concebida toda a ação política naquela conjuntura da América Latina e da esquerda mundial, situá-la numa conjuntura política, ideológica e teórica precisa.
Nas décadas de 1960 e 1970, no Brasil e em outros países, vários movimentos de esquerda debateram novas formas de fazer e pensar a política, introduzindo em suas pautas temas referentes ao indivíduo, à subjetividade e às minorias, questionando profundamente as idéias da esquerda tradicional, inclusive a chamada luta de massas e as formas tradicionais de organização dos partidos comunistas, aliados à então União Soviética. Diversos autores contemporâneos descreveram a ascensão de um novo pensamento de esquerda marxista, nessas décadas, como resultado de um processo que vinha ocorrendo, desde o final da década de 1950, inspirado nas revoluções chinesa e cubana e nos movimentos estudantis europeus e norte-americanos. Destaca-se, também, na formulação desse pensamento, a contribuição da produção teórica dos países do chamado Terceiro Mundo sobre a especificidade do colonialismo e do capitalismo tardio, além dos escritos sobre a teoria da dependência[1]. Uma das principais características desse pensamento marxista de novo tipo, que, sob essas influências, floresce na década de 1970 tanto no Brasil como no mundo, é a valorização, tanto teórica como política, da cultura e da ideologia e de crítica ao comunismo pró-soviético.
Durante a década de 1960, deu-se a rebelião dos jovens franceses, conhecida no mundo como "maio de 1968", quando os estudantes de Paris, a partir da Universidade de Sorbonne, apoiados por parcelas do movimento operário, enfrentaram a polícia nas ruas, levantando barricadas, em defesa de ideais libertários, liderados pelo líder estudantil Daniel Cohn-Bendit. Esse movimento valorizava o papel transformador dos costumes, dos valores, da cultura, constituindo-se num fato marcante das mudanças políticas dessa geração. O mundo parecia explodir: fundiam-se Marcuse, Marx e Freud em correntes neomarxistas, defendiam-se uma sexualidade livre, a importância da utopia e as ações políticas espontâneas e radicais e questionavam-se os valores burgueses e a esquerda tradicional.
Nos Estados Unidos, desde o começo de 1960, inicia-se a organização da chamada Nova Esquerda (new left), tendo como referência a obra de Marcuse. Nessa década ocorre, também, a ascensão dos movimentos das minorias, destacando-se o movimento negro e o movimento feminista, bem como se desencadeia um amplo movimento de desobediência civil contra o recrutamento de jovens americanos para a guerra do Vietnam.
Na América Latina, de forma muito significativa, têm-se as influências da revolução cultural chinesa e da revolução cubana sobre os jovens intelectuais, militantes e estudantes de esquerda, que os levaram à ruptura com o conceito tradicional de política e de esquerda, e provocaram a crítica acirrada ao comunismo oficial da União Soviética e aos partidos de esquerda tradicionais, resultando na incorporação de novas idéias e práticas políticas inspiradas por essas novas experiências. A revolução cultural chinesa, como mostra Gorender (1998), resumiu sua estratégia de luta à defesa do cerco às metrópoles pelos camponeses organizados. Acreditavam que, no interior desses países explorados, o campesinato seria a principal força da guerra popular. Defendia-se o cerco às cidades como estratégia revolucionária eficiente. O artigo de Lin-Piao sobre o cerco às cidades, intitulado "Salve a vitória da guerra popular!", exerceu enorme influência sobre a esquerda, foi lido e divulgado entre estudantes de várias tendências de esquerda, porque negava a hegemonia dos operários no processo revolucionário.
Já a revolução cubana colocou em xeque a luta de massas para a transformação da sociedade capitalista, defendendo a luta armada, tanto sob a forma de guerrilha urbana, como rural. Fundamentados na própria experiência, os cubanos salientavam a importância da mobilização dos setores urbanos, difundiram a concepção do foco guerrilheiro, ocasionando cisões no interior das organizações partidárias pró-Moscou. O texto de Regis Debray intitulado "A revolução na revolução" (1967) divulgava a teoria do foco guerrilheiro e defendia uma nova concepção organizacional, partidária e política, que deveria substituir o modelo comunista soviético de partido.
Em julho de 1967, realizou-se em Havana (Cuba) a Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade - OLAS, que reuniu lideranças da esquerda latino-americana, e na qual se referendou a opção pela guerrilha como o caminho fundamental para a revolução na América Latina[2]
mística criada em torno da figura do líder guerrilheiro Che Guevara, que trocara o cargo de ministro no recém-formado Estado Socialista Cubano para continuar o combate ao imperialismo na África e na Bolívia, onde foi preso e assassinado, em 1967, transformou-o num ídolo mundial da juventude e impulsionou a adoção do foco guerrilheiro nos países da América Latina. Já antes do golpe de 1964, floresceu no Brasil um importante movimento nacionalista, cultural e político, envolvendo setores significativos da sociedade num projeto político de hegemonia burguesa de estilo populista, bem como um movimento operário, estudantil e camponês no qual os comunistas desempenhavam um papel hegemônico, interrompido pelo golpe militar de 1964.
Em conseqüência do golpe, esse movimento oposicionista foi adquirindo características próprias, pois, a partir dessa data, segmentos progressistas da sociedade brasileira foram construindo estratégias de enfrentamento dos diferentes mecanismos de repressão política, ideológica e cultural, progressivamente implantados pelos sucessivos governos militares.
No Brasil, esse debate tem seus desdobramentos nas diferentes cisões no interior do Partido Comunista Brasileiro que dará origem à nova esquerda brasileira, composta de diferentes organizações partidárias clandestinas, com diferentes matizes ideológicos e estratégicos, onde surgem as organizações que adotam e defendem a luta armada como uma estratégia de resistência.
Jacob Gorender (1998), em Combate nas trevas, e Maria Paula Araújo (2000), em A utopia fragmentada, apresentam reflexões sobre as novas esquerdas, no Brasil e no mundo, na década de 1970, deduzindo que o renascimento teórico do marxismo no final dessa década apresenta grande influência do pensamento de teóricos como Marcuse, Bourdieu, e dos ingleses Edward Thompson e Eric Hobsbawm, na construção do pensamento que deu ênfase à cultura e à ideologia, mas que, inegavelmente, tem seus líderes representados por Che Guevara, Fidel Castro, Mao Tse-tung, Lin Piao, Regis Debray, e os brasileiros Carlos Mariguela, Joaquim Câmara Toledo, Maurício Grabois, Mário Alves e Carlos Lamarca - todos assassinados pela ditadura.
Nunca fomos terroristas. A luta
armada foi uma luta de resistência
Historiadores, cientistas sociais e militantes políticos muito têm escrito sobre a luta armada no Brasil no período 1968-1974, descrevendo experiências individuais, elaborando textos de ficção, discutindo teses sobre a guerrilha, apresentando denúncias das torturas e mortes. Esses trabalhos compõem um balanço histórico e a vivência existencial de toda uma geração. Alguns desses livros retratam a vivência de mulheres, como Iara - reportagem biográfica, de Judith Lieblich Patarra, que conta a história de Iara Iavelberg, moça da classe média alta paulistana, de família judia, que opta pela luta armada, vive na clandestinidade, torna-se companheira de Carlos Lamarca e é morta pelo exército, em 1971, na Bahia, pouco antes do assassinato de seu companheiro, no sertão baiano. Outra referência é o livro de Luiz Maklouf Carvalho, Mulheres que foram à luta armada, que, apesar de polêmico em relação à interpretação e à abordagem dos fatos narrados, apresenta depoimentos muito interessantes, mostrando a trajetória de mulheres revolucionárias nas décadas de 1960 e 1970. Outro texto, Mulheres, militância e memória, de Elizabeth F. Xavier Ferreira, nessa mesma linha, apresenta depoimentos de treze ex-presas políticas sobre a militância, a prisão e a tortura, como diz a própria autora, de um ponto de vista incomum: o das mulheres. Outro livro significativo é a obra coletiva dirigida por Albertina de O. Costa, intitulada Memória das mulheres do exílio. Outras narrativas que envolvem mulheres são os relatos da luta de mães pelo reconhecimento de prisões e do desaparecimento de seus filhos. Entre elas, estão o relato de Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, intitulado Procuro meu filho (Editora Record) e o de Elzita Santa Cruz, mãe de Fernando de Santa Cruz Oliveira, com o título Onde está meu filho? (Editora Paz e Terra).
O filme Que bom te ver viva, da cineasta Lúcia Murat, ex-presa política, discute a temática da tortura de mulheres presas políticas, de modo bastante instigante, pois aborda a relação homens versus mulheres, ressaltando a relação das mulheres com a violência da tortura, lembrando que somente homens torturavam nos porões da ditadura. A cineasta Lúcia Murat esteve presa no Presídio de Bangu, no Rio de Janeiro, por 4 anos, durante a ditadura militar, condenada pela Lei de Segurança Nacional.
Há, portanto, uma expressiva bibliografia referente a esse período, escrita por seus protagonistas, militantes de esquerda e de direita, e por muitos estudiosos do período. A maioria dos relatos disponíveis está marcada pela diversidade dos sujeitos e pela multiplicidade de abordagens, assumindo formas que vão de relatos de trajetórias a testemunhos, contendo memórias, entrevistas, reconstituições ficcionais apresentadas sob a forma de vídeos, filmes e livros. A bibliografia organizada por Marcelo Ridenti, com o título As esquerdas em armas contra a ditadura, é uma fonte que deve ser consultada por todo os interessados no assunto.
O debate mais significativo que perpassou a esquerda das décadas de 1960 e 1970 foi a opção pela luta armada contra a ditadura como resposta à questão radicalismo versus imobilismo. Era esse o debate que revelava o conflito político entre uma esquerda tradicional e uma esquerda alternativa, formada esta, majoritariamente, por jovens que acusavam a esquerda tradicional de conservadorismo, imobilismo, passividade e excesso de controle, enquanto aquela acusava os jovens de radicais, voluntaristas, espontaneístas.
Essa sedução pela ação imediata e pelo pragmatismo, que caracterizou essa esquerda alternativa, em sua maioria, é descrita no livro de Daniel Aarão Reis e Jair Ferreira de Sá (1986) e também em Araújo (2000), que demonstram como, durante a década de 1960, a paixão pelo radicalismo não se traduziu apenas no desejo de heroísmo, coragem, ousadia, mas trouxe consigo contradições e controvérsias, para a esquerda, sobre a justificativa para se adotar um novo tipo de resistência revolucionária, traduzida na opção pela luta armada por vários partidos e organizações da esquerda, na América Latina.
Para compreender esse debate que defendia uma resistência armada mas nunca terrorista, considerada revolucionária, justa e do povo, que, sob vários matizes teóricos e ideológicos, assumia a forma de guerrilhas, urbana e rural, era preciso compreender o pensamento e as motivações dos defensores dessa forma de resistência e de luta de classe, considerada justa e necessária, não apenas para a superação da injustiça social, mas da própria lógica do sistema capitalista, com um projeto ético e pedagógico.
Pela esquerda brasileira, a ação armada era defendida como uma resposta de autodefesa, inspirada em posicionamentos como os de Fanon, em seu livro Os condenados da terra, publicado em 1961, lido por quase todos os militantes daquela época que defendiam a luta armada. Fanon foi um martinicano que, como médico psiquiatra do exército francês, presenciou os horrores da guerra colonial na Argélia e, diante da barbárie, entendeu e justificou a ação de resistência do colonizado contra o colonizador. Ele passou a ver essa resistência armada ou não como positiva, não só por ser uma resposta à violência dos colonizadores, mas porque era um elemento de construção da identidade do colonizado: a ação armada não apenas o libertaria das condições de exploração econômica, mas resgataria sua auto-estima, sua integridade e sua condição humana.
No Brasil, o período da luta armada foi relativamente curto: iniciou-se em 1968, e terminou com o massacre da Guerrilha do Araguaia, em 1974. Embora tenha havido notícia de ações armadas anteriores a 1968, considerando o período pós-golpe de 1964, estas tiveram caráter pontual e esporádico.
Outro ponto salientado como uma característica importante da nova esquerda, em todo o mundo, no final da década de 1960 e na metade dos anos 1970, é o que Araújo (2000) denomina de "ida ao povo".
É exemplar, na prática dessa postura, a atitude da Ação Popular, organização de esquerda de origem católica, que deslocou muitos de seus jovens militantes e dirigentes, nessa época, para morar em favelas, em bairros pobres da periferia das grandes cidades ou para áreas rurais, com potencial de conflitos pela posse da terra. A idéia era a integração dos militantes, estudantes e intelectuais dessa organização na vida do povo pobre dessas regiões. A Guerrilha do Araguaia, uma iniciativa do PC do B, com outra concepção de revolução, também optou por enviar militantes para a região sul do estado do Pará, para morar e trabalhar junto ao povo dessa região, visando implementar a guerrilha rural.
Nessa época, quando as organizações envolvidas na luta armada retrocedem, já enfraquecidas e isoladas, devido à selvagem repressão que se abateu sobre essa nova esquerda, cresce a repressão com mortes, assassinatos e desaparecimentos.
Outro ponto importante de discussão e de polêmica se dá, na época, em torno do caráter da ditadura, da análise da realidade brasileira e do caráter da opção pela luta armada, o que levou a esquerda brasileira sobrevivente desse período a participar ativamente na retomada dos movimentos sociais da periferia dos grandes centros urbanos e a apoiar o novo movimento sindical que ressurgiu com as greves de Contagem (MG), Osasco e São Bernardo (SP) e a nele se integrar. Esse esforço conduzirá, posteriormente, à criação do Partido dos Trabalhadores, em 1980 (que não é objeto deste texto).
Voltando à análise anterior, com a distensão e a abertura políticas, que resultarão na Anistia aos perseguidos políticos da ditadura e nas ações e teorias políticas derivadas do posicionamento da ditadura militar. Nesse período, que denomino de pós-luta armada, constitui-se uma nova forma de busca de legitimação do Estado ditatorial, após o fim do milagre econômico e da luta armada. A ditadura tentava negociar e incorporar algumas das principais exigências da oposição, num esforço de ampliação da sua base de sustentação, através de novas formas de controle político e de repressão, como a retomada do processo eleitoral controlado e tutelado, a anistia aos presos políticos e, já na década de 1980, a revogação da Lei de Segurança Nacional. Tentava, com a chamada abertura política, garantir o controle da sociedade civil não mais de forma repressiva direta, como foi no governo Médici, mas pela aplicação seletiva do poder coercitivo de um Estado agora não mais militar mas repressivo e violento de outra forma, como vimos no início deste artigo.
O governo do ditador Geisel inicia-se, em 1974, com uma acirrada luta interna entre os militares da chamada linha-dura e os adeptos da distensão lenta e gradual. Nesse ano, a oposição ao regime estava, de modo geral, desmobilizada e debilitada, devido à repressão brutal aos militantes das organizações clandestinas e aos fortes mecanismos de controle estatal sobre a sociedade civil como um todo. É na transição do governo do ditador Médici para o governo do ditador Geisel (de setembro de 1973 a maio de 1974) que desaparecem mais de trinta militantes de organizações que não aderiram, na prática, à luta armada: militantes da Ação Popular Marxista Leninista, APML e do Partido Comunista Brasileiro - PCB. É, também, durante o governo do ditador Geisel que, em 1975, ocorre o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, dado como suicida, e do operário Manuel Fiel Filho, em circunstâncias semelhantes, bem como o assassinato, em São Paulo, de dirigentes do Partido Comunista do Brasil - PC do B- no episódio que ficou conhecido como a "chacina da Lapa", em dezembro de 1976.
Como mostra Alves (1984), o avanço da violência da repressão, nos chamados anos de chumbo, tornou-se uma ameaça pessoal a todos os membros da sociedade civil, uma vez que, com o avanço da repressão, passa a ser tênue a diferença entre a oposição contestadora de fato e aquela considerada apenas como de pressão circunstancial, do ponto de vista do próprio sistema: a repressão atinge quase todos que, de uma forma ou outra, faziam críticas ao governo. A brutalidade do Estado militar ditatorial foi, durante o governo Médici, exercida de forma indiscriminada, atingindo cruelmente toda a oposição ao regime e não só os que optaram pela luta armada como também muitos de outros setores da sociedade civil: jornalistas, artistas, intelectuais, operários, dos setores da Igreja, além de professores e estudantes.
A morte de Vladimir Herzog, respeitado jornalista da imprensa tradicional, os ataques aos estudantes universitários, as prisões e os assassinatos de operários ligados à Igreja, como Fiel Filho, de membros da classe média e alta, como o ex-deputado Rubens Paiva, que ousaram se posicionar contra o regime militar, deixava claro para toda a sociedade, mesmo durante o início do governo do ditador Geisel, que o aparato repressivo não estava desmobilizado. Durante o governo do ditador Geisel (1974-1978), a situação da oposição à ditadura começa a se inverter, pois setores de elite e das classes médias passam a organizar um amplo movimento de oposição aos rígidos controles repressivos e de centralização do poder imposto pelo regime militar pós-AI-5.
Nesse período, foi muito importante a atuação de entidades da sociedade civil, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o CNBB (Conselho Nacional dos Bispos do Brasil) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), na defesa dos direitos humanos e liberdades democráticas, bem como na pressão para obrigar o Estado Militar a começar o processo de distensão. Como a Igreja tinha, naquela ocasião, muitos de seus membros presos e torturados, ao se sentir atingida, começou a sensibilizar-se e a desenvolver ações críticas ao regime militar. Parte da própria hierarquia da Igreja, que assumiu, no início do regime militar, posição de defesa desse regime, colocou-se contra as terríveis arbitrariedades da ditadura. E entre esses expoentes, está D. Paulo Evaristo Arns, que se transforma, em São Paulo, num ferrenho defensor das liberdades democráticas, defendendo não só muitos sacerdotes e membros das comunidades eclesiais de base que foram presos, torturados e assassinados, como todos os atingidos pela repressão.
Esse movimento da sociedade civil de defesa das liberdades democráticas agrega várias lideranças políticas de diferentes matizes, até lideranças da Arena, partido que era a base de sustentação do governo militar. Entre essas, destaca-se o senador Teotônio Vilela, que, ao visitar presos chamados de terroristas, ouviu o relato de suas atuações em defesa da liberdade, e os testemunhos das torturas a que foram submetidos. Ao sair do presídio, o senador declarou para toda a sociedade que, em lugar de terroristas, ali só encontrou jovens idealistas, e se integrou na luta em favor de uma anistia ampla, geral e irrestrita.
O governo Geisel, ao mesmo tempo que assumia a política denominada de distensão lenta e gradual, agia com extrema dureza sempre que se sentia ameaçado, tanto pela oposição como por seus aliados. Como prova dessa conduta, basta observar como, em seu período de governo, foram cassados vários parlamentares, entre os quais destacamos o senador Carlos Wilson, da Arena de Pernambuco, e parlamentares do MDB, entre os quais o deputado federal Alencar Furtado. Com a proximidade do processo sucessório, ocorre a demissão do General Sílvio Frota, Ministro do Exército, cuja candidatura à Presidência fora articulada por um grupo da Arena sem o consentimento do ditador, além da demissão do comandante do II Exército, o General Ednardo D'ávila Mello.
Cabe, entretanto, lembrar que no governo do ditador Geisel não se revogaram os principais dispositivos da Lei de Segurança Nacional e da Lei de Imprensa, inspirada na doutrina de Segurança Nacional e no AI-5; apenas, sob a forte pressão da sociedade civil, houve algumas flexibilizações nesse setor. Esse período de reorganização do movimento popular é marcado por grandes campanhas, como a luta pela anistia, contra a carestia e pelas liberdades democráticas. Uma das características dessa fase de institucionalização do Estado ditatorial brasileiro foi a busca de legitimidade, que visava à ampliação de sua base de sustentação política. Alves (1984) descreve esse período como de crescentes dificuldades a serem enfrentadas no terreno econômico, no qual o Estado de Segurança Nacional passou a preocupar-se com a criação de novos mecanismos para a obtenção de apoio político e social.
Sabemos que, apesar de tudo o que foi escrito, ainda há muito a esclarecer e a estudar sobre esse período. A exemplo, a abertura de todos os arquivos da repressão, o fim da lei do sigilo - que requer 50 anos após os fatos para que eles se tornem de domínio público. Só com medidas como essa é que, talvez, possamos saber do destino que a repressão deu aos militantes desaparecidos, pois isso, ainda, constitui um grande mistério. Ler e entrar em contato com essa literatura, afirma Araújo (2000), é penetrar num mundo de revelações, muitas vezes traumáticas, de experiências cruciais mas muito ilustrativas da nossa história recente, ainda não suficientemente conhecida pelos brasileiros[3]
A polêmica atual gerada pelo
processo acionado pela família Teles (2008)
No caso específico da conjuntura atual, esta polêmica ressurge pela ação corajosa da "família Teles", da feminista e socialista Amelinha Teles, nossa querida companheira de longa data, desde o tempo da luta pela anistia, passando pelo Brasil Mulher, pelo governo de Luiza Erundina até os dias de hoje. Amelinha e seus familiares, atingidos profundamente pela tortura durante a ditadura, numa atitude extremamente corajosa e em uma ação inédita, acusam o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra de seqüestro e tortura em 1972 e 1973. Trata-se de uma ação civil declaratória, ou seja, não implica pena ou indenização pecuniária. Essa ação foi julgada favoravelmente em primeira instância em novembro.
A ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público Federal. A ação tem quatro objetivos: declarar a responsabilidade de Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, ex-comandantes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo (1970-1976); pedir que sejam condenados a reembolsar aos cofres públicos o dinheiro gasto com a indenização das vítimas; proibir que ambos exerçam função pública; e declarar a omissão da União em abrir os arquivos sigilosos da ditadura militar.
Entretanto, a AGU - Advocacia Geral da União - declara entender que a Lei de Anistia de 1979 isenta os militares de responsabilidade legal pelos crimes cometidos, e toma a defesa dos torturadores. Considera que o fato de o Congresso brasileiro ter aprovado a lei que considera a tortura crime só em 1997, permitiu que prescrevesse em 1996 o prazo para a responsabilização de quem praticou tais crimes antes desta data.
A Advocacia Geral da União (AGU) tinha a opção de escolher um lado. E ficou do lado dos militares, acusados das torturas, das mortes e dos desaparecimentos que ocorreram no DOI-Codi no período da ditadura militar. Segundo o procurador Marlon Weichert, um dos autores da ação, "A legislação prevê que a União federal, ao receber a contestação, pode solicitar que não seja recebida como ré, mas como co-autora ou assistente do Ministério Público Federal. Era o que esperávamos que fosse acontecer. Mas aconteceu o contrário. A União não só se defendeu em relação aos pedidos de ação contra ela, mas defendeu os interesses das pessoas físicas que o Ministério Público considera que são torturadores e responsáveis por homicídios".
A procuradora Eugênia Fávero disse: "A União tem uma posição até privilegiada em ações desse tipo, em ação civil pública e ações populares. Quando ela é acionada como ré, caso ela concorde com a medida daquela ação, pode dizer que não vai contestar e vai atuar ao lado do autor. Foi a opção que deixamos clara na petição inicial".
É inconcebível que o governo do presidente Lula, sendo o próprio presidente um anistiado político, recebendo uma justa reparação mensal concedida pela Lei da Anistia, que tem entre seus ministros perseguidos do regime militar, inclusive ex-presos políticos como a ministra Dilma Rousseff e Paulo Vannuchi, entre outros, não se posicione, em sua totalidade, claramente diante de um sério processo contra aqueles que comprovadamente cometeram crimes contra a humanidade.
Os argumentos e debates que vieram a público revelam o quanto esse tema está presente em nossa sociedade, como o Estado representado pelas Forças Armadas e seu alto comando são intransigentes na defesa do sigilo em relação a esta questão e o quanto é arriscado falar deste assunto.
Os torturadores não precisam apenas ser responsabilizados; é preciso investigar, esclarecer e punir todos que cometeram crimes imprescritíveis. Os processos movidos corajosamente pela família Teles e pelo MPF são, sem dúvida, a oportunidade de se fazer justiça, sem revanchismo, mas movidos pelos mais nobres sentimentos que remetem ao respeito aos direitos universais da pessoa humana.
É hora da justiça!
É hora de honrar e resgatar a memória daqueles e daquelas que lutaram e morreram na luta por uma pátria socialista. É hora de mostrar para o Brasil e para o mundo que não mais haverá omissão, tolerância, conivência com aqueles que praticaram atos horrendos e dormem na certeza da impunidade, por conta da convicção da prescrição dos seus atos.
Paulo Vannuchi, Secretário Nacional dos Direitos Humanos do Governo Federal, fez as seguintes declarações em São Paulo, ao participar da abertura da exposição Direitos Humanos nos Parque Villa-Lobos, na zona oeste da cidade. Na ocasião, como noticiou o jornal O Estado de S. Paulo, o ministro lembrou que os membros da Resistência Francesa, conhecidos como maquisards, que se opunham à ocupação do país pelos nazistas, e os italianos que se insurgiram contra a ditadura de Benito Mussolini, mesmo usando armas não eram terroristas. "Quem são os terroristas franceses? Os maquisards? Quem são os terroristas italianos? Os partiggiani?", pergunta. "Ninguém os chama de terroristas: eles estavam lutando contra o nazismo. Mesmo que tivessem de usar as armas, não eram terroristas", defende Vannuchi.
O ministro também lamentou que, passados mais de 20 anos do fim da ditadura, se ouçam declarações como as de Mendes: "É lamentável que ainda haja esse tipo de equívoco, que denota algum desinteresse no combate à tortura - o que deveria ser uma determinação de cada ministro, cada desembargador, enfim, de todo o Poder Judiciário". Gostaria de lembrar ao Secretário Nacional de Direitos Humanos que é dever de todos, inclusive do Poder Excecutivo, do governo Lula conduzir esse processo em defesa da nossa história, da nossa memória e por um dever de justiça.
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Notas
1 Gorender, ao descrever a teoria da dependência, lembra que a estabilização do sistema capitalista nos países desenvolvidos e a incorporação da classe operária entre os beneficiários desse sistema levaram esses setores da classe trabalhadora a perderem a expectativa revolucionária. As esperanças da esquerda voltam-se para outros setores mais explorados: os negros dos Estados Unidos e os povos miseráveis do terceiro mundo, desempregados e superexplorados. Baran Sweezy e Marcuse fortalecem esse enfoque (1998: p. 84).
2 A esquerda brasileira, como muitas outras da América Latina, passou a discutir a viabilidade do caminho da luta armada sob diferentes matizes, visando a implantação do socialismo no continente. No caso brasileiro, a ditadura militar já se implantara, fechando os espaços para a luta democrática, de tal forma que toda a esquerda organizada, com exceção do PCB, optou por esse caminho. A diferença está no fato de algumas organizações terem optado por iniciar imediatamente as ações armadas e outras terem protelado essa ação.
3 A censura à imprensa durante o governo Médici é descrita na coleção Nosso Século, da Editora Abril, publicada em 1980, no livro do jornalista Bernardo Kucinsk, e na excelente pesquisa de Maria Helena Moreira Alves, publicada pela Editora Vozes, em 1985.
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Bibliografia
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964 - 1984). Petrópolis: Vozes, 1984.
ASSIS, Chico e outros. Onde está meu filho:história de um desaparecido político. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia Fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000.
COSTA, Albertina. O feminismo nos trópicos; resíduos de insatisfação. São Paulo: Fundação Carlos Chagas - cadernos de pesquisa,no 66,ago.1988.
FERREIRA,Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.
Valli,Virginia. Eu Zuzu Angel, procuro meu filho. Rio de Janeiro: Editora Record, 1987.
Filmes:
"Que bom de Ver Viva" Lucia Murat - Sagres Produções-1986.
"Bope-Tropa de Elite"- Jose Padilha - 2007.
Obs: Neste texto, não me proponho a focar a tortura física, aquela que envolve assassinatos, ocultação de cadáveres, pancadas, choques elétricos, pau-de-arara, geladeira, cadeira-do-dragão, afogamentos, asfixia em sacos plásticos, capuz, muito sangue e muito grito, praticada sob o aval da Lei de Segurança Nacional, contra aqueles que resistiram à ditadura militar - momento histórico no qual fui por duas vezes presa, cumpri pena de mais de um ano nos quartéis da Vila Militar do Rio e no Presídio de Mulheres Talavera Bruce (Bangu feminino) e passei pela extrema violência da tortura física, tanto no DOI-Codi do Rio como na Oban de São Paulo. Além de ter um irmão desaparecido político e outro expulso da Universidade Federal de Pernambuco quando cursava o último ano de Direito, pelo Decreto 477, o mesmo decreto que expulsou da Universidade professores como Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Maurício Tratember

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