sábado, 12 de fevereiro de 2011

sentença determinando perda de fução pública por abuso de autoridade e tortura

Apresentamos uma decisão rara mas que aos poucos passa a compor o quadro de decisões judiciárias  acerca de abuso de autoridade e tortura, a sentença faz referências ao uso de torturas  e abuso de autoridade em delegacias e presídios , e expõe jurispudências que demonstram que a palavra da vítima e de outros presos se constituem prova válida. Com isso esperamos contribuir para que  os agentes públicos reflitam sobre a sua ação no exercício da função, e  a exerçam  dentro dos parâmetros de justiça e legalidade.



Tortura e Abuso de Autoridade
Publicado por LÚCIA DE FÁTIMA SILVA QUADROS em 04/01/2010


Tipo:
Criminal

Descrição:
Sentença Condenatória - Art.1º, II, § 4º, da Lei nº 9455/97, Art.3º, "a" e "i" da Lei nº 4898/65, c/c Art. 70 do CP.

Sentença:



Processo n.º. 136/2002
Acusados: Carlos Antônio dos Santos Melo, Irineu Silva Cardoso,
                   Francisco de Jesus Lima Freire e Jorge Luís Portela
Vítima:      Antônio Carlos Pereira da Silva




Vistos etc.

Trata-se de Ação Penal Pública movida pelo Ministério Público em desfavor de Carlos Antônio dos Santos Melo, Irineu Silva Cardoso, Francisco de Jesus Lima Freire e Jorge Luís Portela de Oliveira pela prática dos crimes tipificados no art. 1º, II, § 4º, I da Lei 9455/97, art. 3º, “a” e “i” e art. 4º, “a” da Lei 4898/65 c/c art. 70 do Código Penal.

A denúncia veio respaldada por documentos e fotografias.

O procedimento teve início depois de representação oferecida pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.

A denúncia foi recebida (fls. 02).

Os acusados foram interrogados (fls. 41 a 47 – Irineu Silva Cardoso); os demais, às fls. 48 a 56.

As alegações preliminares foram apresentadas (fls. 57/58).

Realizou-se a instrução processual com depoimento da vítima (fls. 62/63) e testemunhas arroladas pelas partes.

Foram requeridas e deferidas diligências (fls.140, verso e 143). Laudos periciais (fls. 144/145).

As partes apresentaram suas alegações finais; o Ministério Público às fls. 147/167 e os réus, às fls. 168/182.

É o relatório. DECIDO.

A representante do Ministério Público dispôs-se a provar que os acusados Carlos Antônio dos Santos Melo, Irineu Silva Cardoso, Francisco de Jesus Lima Freire e Jorge Luís Portela de Oliveira prenderam ilegalmente, conduziram pelas ruas, bateram no trajeto até a Delegacia e torturaram no interior dela a vítima Antônio Carlos Pereira da Silva, tudo isso sob os olhares atemorizados da população.

As fotografias de fls. 11 e os exames de corpo de delito de fls. 15 e 27 servem para comprovar, inequivocamente, que a vítima apresentava lesões. Resta saber se foram os réus os autores delas e as circunstâncias em que ocorreram.

Todos os acusados negaram a autoria dos ilícitos. 
O réu, Carlos Antônio dos Santos Melo, declarou que procurou a vítima para um diálogo e que, depois de ser desacatado, a conduziu até a delegacia com o apoio de dois dos outros acusados. Todos os outros contam versões semelhantes.

Os depoimentos das testemunhas e laudos periciais desmoralizam as versões dos acusados.

A vítima relatou, com riqueza de detalhes, o seu martírio durante todo o tempo em que esteve presa ilegalmente (fls. 68). Vejamos as declarações: “...entrou numa boate de nome CRI  na cidade de Magalhães de Almeida; que dois minutos depois o Sargento Melo entrou na boate, segurou no braço do depoente e perguntou se estava incitando a violência na cidade; que o depoente respondeu que não era verdade; que em seguida o Sargento deu-lhe um tapa na cara dizendo-lhe que estava desacatando autoridade; que nesse momento chegaram s policiais Irineu, Freire e o carcereiro Jorge que juntamente com o Sargento Melo jogaram o depoente no chão e o algemaram; que em seguida os mesmos lhe deram vários pontapés e saíram lhe arrastando pelo chão...”

Depois de dar mais detalhes sobre seu sofrimento no ato de sua prisão e condução até a delegacia, a vítima relata o fato de lhe ter sido posto um saco de fibra na cabeça e, já no interior da delegacia e longe dos olhares da população, deu-se uma nova sessão de socos e pontapés.

As versões são opostas, de um lado os réus dizem que a vítima se feriu porque se jogou no chão para aparecer para o povo e a vítima, por seu turno afirma que suas lesões foram decorrentes das agressões. Com quem está a verdade?

A resposta está no laudo de exame de corpo de delito e nos depoimentos das testemunhas.

O exame de corpo de delito (fls. 27) descreve múltiplas lesões em diversas partes do corpo, o que deixa sem plausibilidade a versão dos réus de que a vítima se feriu numa queda.

O próprio perito, ao prestar seu depoimento, (fls. 121) esclareceu que: “ o examinado apresentava seis hematomas espalhados pelo corpo; que tais hematomas não poderiam ter sido causados por uma mera queda...”    

Não bastasse a versão da vítima, confirmada pelo laudo pericial, as testemunhas apresentam versões que servem para robustecer a versão da vítima.

A testemunha José Mendes de Sousa confirmou integralmente a versão da vítima, ao afirmar que viu a vítima ser conduzida a socos e pontapés até a delegacia. A testemunha Raimundo Nonato Souza Silva relatou o ocorrido no interior do bar e apresentou versão semelhante à da vítima. A testemunha João Evangelista Marques da Silva também presenciou as agressões.

 Pois bem, os fatos ocorreram, resta dar a eles o correto enquadramento legal.

Deve-se descartar, de logo, a absorção do crime de abuso de autoridade pelo de tortura.

Na verdade, os agentes, mediante uma só açãoart. 70 do Código Penal).

O art. 3º da Lei 4898/65 dispõe que:

“Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

a) à liberdade de locomoção;
.....
i) à incolumidade física do indivíduo;

O art. 4º, por sua vez, estabelece que:

“Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;
c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;”

As condutas dos acusados: de prenderem a vítima sem ordem judicial e sem flagrante e atentarem, no momento das suas prisões, contra a sua incolumidade física já são suficientes para a caracterização do abuso de autoridade. Ressalte-se que a vítima relatou e testemunhas confirmaram que todos os acusados participaram dos fatos.

A tortura se deu no trajeto até a delegacia, sob os olhos do povo, e parte dela, no interior da delegacia, sempre com relatos de participação de todos os acusados. Enquanto uns seguravam a vítima, os outros lhe aplicavam socos e pontapés.

Os crimes objeto do presente processo, pela sua natureza e pelo status de seus sujeitos ativos, são de difícil comprovação. É evidente o receio de pessoas simples, especialmente em pequenas cidades do interior, de testemunharem contra policiais.

Outro óbice para a elucidação de crimes de tortura e abuso de autoridade está no fato de ocorrerem no interior de delegacias ou presídios com a presença exclusiva dos autores do ilícito e suas vítimas.

A tortura é, para os policiais mais incapazes, o único “método de investigação”.

A dificuldade de comprovação desses crimes tem resultado em uma intolerável impunidade. A tortura em presídios tem sido objeto de vários estudos e denúncias de entidades, inclusive do Brasil à ONU por desrespeito aos direitos humanos pelos próprios agentes do Estado.

A despeito de a regra ser a dificuldade de comprovação desses crimes, no caso presente, a certeza da impunidade era tão grande que os acusados não tomaram precauções mínimas para esconder sua conduta. Praticaram o crime na presença de muitas pessoas e permitiram a produção de provas robustas de seus atos delituosos.

Pouco se tem de jurisprudência sobre a prova no processo por tortura em face de sua tipificação específica recente, mas sobre abuso de autoridade, que guarda semelhança e também é objeto desse processo, há jurisprudência farta sobre o valor do depoimento da vítima e, até de outros presos, senão vejamos:

“ABUSO DE AUTORIDADE- CRIME COMETIDO POR POLICIAIS CONTRA PRESO NO INTERIOR DE CADEIA PÚBLICA - PROVA PARA A CONDENAÇÃO - PALAVRA DA VÍTIMA E DEPOIMENTOS DE OUTROS DETENTOS - VALIDADE - RECURSO DESPROVIDO - As violências policiais contra pessoas presas, praticadas na prisão, entre quatro paredes, via de regra não têm testemunhas de vista, daí tanta impunidade. Mas, se os depoimentos dos ofendidos são convincentes, firmes, verossímeis, é possível a condenação (JC 25/436).” (TJSC - ACr 97.003218-8 - 1ªC.Cr. - Rel. Des. Nilton Macedo Machado - J. 27.05.1997)
“PROVA - CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE - PALAVRAS DA VÍTIMA - VALOR - ENTENDIMENTO - Em se tratando de crime de abuso de autoridade acontecido no recinto de delegacia de policia, longe das vistas de testemunhas, a oposição entre a versão do acusado e a do ofendido resolve-se por meio da prova indiciária, sendo apto a condenação a incriminação feita pelo sujeito passivo, que, harmônico e coerente, permaneceu inabalado durante todos os trâmites processuais”. (TACRIMSP - ACr 716.883 - 2ª C. - Rel. Juiz Haroldo Luz - J. 06.08.1992)
No caso em tela há mais provas do que seriam necessárias.
O art. 1º da Lei 9455/97 dispõe que:
“Constitui crime de tortura:
....
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”

A definição legal do crime de tortura se amolda perfeitamente à conduta dos réus, conforme demonstrado nos depoimentos e laudo pericial.

Nessas condições, condeno os acusados Carlos Antônio dos Santos Melo, Irineu Silva Cardoso, Francisco de Jesus Lima Freire e Jorge Luís Portela de Oliveira pela prática dos crimes tipificados no art. 1º, II, § 4º, I da Lei 9455/97, art. 3º, “a” e “i” e art. 4º, “a” da Lei 4898/65 em concurso formal (art. 70 do Código Penal).

Atendendo ao que determina o artigo 59 do Código Penal, passo a fixar-lhes a pena.

O réu Carlos Antônio dos Santos Melo:

Considerando a culpabilidade do réu Carlos Antônio dos Santos Melo, de gravidade acentuada pelo fato de ser o mais graduado dos envolvidos; os antecedentes, considerados ruins pela existência de relatos de outras agressões a presos; a conduta social, sem informações que possam servir de base para compreendê-las como ruins, presumem-se, pois, boas; a personalidade do agente, sem razoabilidade por ser reiterada a conduta; as circunstâncias e conseqüências do crime, de enorme gravidade; o comportamento da vítima, desfavorável ao réu; fixo a pena base em 03 (três) anos de reclusão.

Tendo em vista existência de causa de aumento de pena do § 4º, I, por ser o réu funcionário público, aumento a pena de um terço, elevando-a para 04 (quatro) anos de reclusão.

Tendo em vista a regra do concurso formal, elevo a pena em um quarto, tornando-a definitiva em 05 (cinco) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado (art. 1º, § 7º da Lei 9455/97), em estabelecimento penal adequado.

Por força do § 5º, do art. 1º da Lei 9455/97, condeno o réu na perda da função pública e na interdição para o exercício de qualquer outra função pública pelo dobro do prazo da condenação.

O réu Irineu Silva Cardoso:

Considerando a culpabilidade do réu Irineu Silva Cardoso, de gravidade razoável; os antecedentes, considerados ruins pela existência de relatos de outras agressões a presos; a conduta social, sem informações que possam servir de base para compreendê-las como ruins, presumem-se, pois, boas; a personalidade do agente, sem razoabilidade por ser reiterada a conduta; as circunstâncias e conseqüências do crime, de enorme gravidade; o comportamento da vítima, desfavorável ao réu; fixo a pena base em 03 (três) anos de reclusão.

Tendo em vista existência de causa de aumento de pena do § 4º, I, por ser o réu funcionário público, aumento a pena de um terço, elevando-a para 04 (quatro) anos de reclusão.

Tendo em vista a regra do concurso formal, elevo a pena em um quarto, tornando-a definitiva em 05 (cinco) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado (art. 1º, § 7º da Lei 9455/97), em estabelecimento penal adequado.

Por força do § 5º, do art. 1º da Lei 9455/97, condeno o réu na perda da função pública e na interdição para o exercício de qualquer outra função pública pelo dobro do prazo da condenação.

O réu Francisco de Jesus Lima Freire:

Considerando a culpabilidade do réu Francisco de Jesus Lima Freire, de gravidade razoável; os antecedentes, considerados ruins pela existência de relatos de outras agressões a presos; a conduta social, sem informações que possam servir de base para compreendê-las como ruins, presumem-se, pois, boas; a personalidade do agente, sem razoabilidade por ser reiterada a conduta; as circunstâncias e conseqüências do crime, de enorme gravidade; o comportamento da vítima, desfavorável ao réu; fixo a pena base em 03 (três) anos de reclusão.

Tendo em vista existência de causa de aumento de pena do § 4º, I, por ser o réu funcionário público, aumento a pena de um terço, elevando-a para 04 (quatro) anos de reclusão.

Tendo em vista a regra do concurso formal, elevo a pena em um quarto, tornando-a definitiva em 05 (cinco) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado (art. 1º, § 7º da Lei 9455/97), em estabelecimento penal adequado.

Por força do § 5º, do art. 1º da Lei 9455/97, condeno o réu na perda da função pública e na interdição para o exercício de qualquer outra função pública pelo dobro do prazo da condenação.

O réu Jorge Luís Portela de Oliveira:

Considerando a culpabilidade do réu Jorge Luís Portela de Oliveira, de gravidade razoável; os antecedentes, considerados ruins pela existência de relatos de outras agressões a presos; a conduta social, sem informações que possam servir de base para compreendê-las como ruins, presumem-se, pois, boas; a personalidade do agente, sem razoabilidade por ser reiterada a conduta; as circunstâncias e conseqüências do crime, de enorme gravidade; o comportamento da vítima, desfavorável ao réu; fixo a pena base em 03 (três) anos de reclusão.

Tendo em vista existência de causa de aumento de pena do § 4º, I, por ser o réu funcionário público, aumento a pena de um terço, elevando-a para 04 (quatro) anos de reclusão.

Tendo em vista a regra do concurso formal, elevo a pena em um quarto, tornando-a definitiva em 05 (cinco) anos de reclusão, a ser cumprida em inicialmente em regime fechado (art. 1º, § 7º da Lei 9455/97), em estabelecimento penal adequado.

Por força do § 5º, do art. 1º da Lei 9455/97, condeno o réu na perda da função pública e na interdição para o exercício de qualquer outra função pública pelo dobro do prazo da condenação.

Custas ex lege.

Transitada em julgado, lancem-lhes os nomes no rol dos culpados.

 Publique-se. Registre-se. Intimem-se.


       São Bernardo, 19 de maio de 2004.


                                                              Lúcia de Fátima Silva Quadros
                                                  Juíza de Direito
Fonte: amma

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