sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Interceptação telefônica sem ordem judicial?


http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2013/07/26/interceptacao-telefonica-sem-ordem-judicial/




O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, editou um decreto criando a Comissão Especial de Investigação de Atos Violentos em Manifestações Públicas (Ceiv) com o objetivo de coibir a violência contra pessoas e depredação contra o patrimônio público e privado, durante as manifestações populares. Para tanto, equipou a Comissão de poderes especiais, dentre eles…




governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, editou um decreto criando a Comissão Especial de Investigação de Atos Violentos em Manifestações Públicas (Ceiv) com o objetivo de coibir a violência contra pessoas e depredação contra o patrimônio público e privado, durante as manifestações populares. Para tanto, equipou a Comissão de poderes especiais, dentre eles o de obrigar as operadoras de telefonia e provedores de internet a atender com prioridade, no prazo de 24 horas, os pedidos requisitados pela Ceiv. Sem ordem judicial.

É de transparente ilegalidade o ato do governador, apesar de se reconhecer que o objetivo é justamente o de proporcionar uma investigação mais rápida e segura para apurar as responsabilidades penais e civis dos agressores e depredadores. Mas, para tanto, há um ordenamento jurídico que deva ser obedecido para se atingir o due process of Law, em respeito às diretrizes que norteiam o Estado Democrático de Direito.

A liberdade humana sempre foi tema permanente no Direito. O homem procura por todos os meios alcançar inovadores instrumentos para realizar de forma mais prática suas tarefas e, consequentemente, produzir mais e ganhar mais tempo em busca de outras. Seria, guardada a comparação, uma máquina que se auxilia de outras máquinas para fazer funcionar a engrenagem da vida. Tudo em busca de uma satisfação que ultrapassa os limites da individualidade e se instala no recôndito da comunidade, no mais amplo critério de liberdade. “A liberdade não morre enquanto os homens continuarem a lutar por ela”, sentenciou o genial Charles Chaplin. Assim, quanto maior for a fruição dos direitos sociais, maior será a abrangência da dignidade humana. E o homem poderá ingressar no estágio da realização espontânea do Direito, apregoada por Montesquieu, quando as obrigações são assumidas e honradas sponte propria, sem a intervenção do Judiciário.

A revolução tecnológica traz inúmeras conquistas que deveriam ser colocadas a serviço do homem, procurando atender suas necessidades e conveniências, para contribuir com a formação de uma sociedade mais harmônica, com a possibilidade de se atingir um estágio mais próximo da perfeição. Ocorre que, muitas vezes, a tecnologia supera os valores do homem e, como um tsunami, passa arrastando todas as conquistas morais, éticas e legais, sem qualquer parâmetro e provoca consequências gravosas na área jurídica. “O crédito que toda Humanidade abre à ciência, acentua Costa Jr., é ilimitado e preenche as esperanças, mas já não se admite que o ingresso de nossa civilização na era da cibernética total possa operar-se à margem da reflexão crítica. Especialmente quando se sabe hoje que o progresso técnico interfere até mesmo na evolução biológica, modificando o seu curso”.[1] Quando a ciência invade a área acobertada pelas liberdades públicas, desrespeitando-as, faz-se necessária a utilização de um instrumento de controle e restabelecimento do status quo ante.

Dentre os direitos conquistados, o da intimidade, por ser um dos mais recentes, merece tutela toda especial. O Estado não é o detentor do jus vitae et mortis sobre o cidadão. Pode legislar a respeito das situações que gravitam no mundo exterior e não no interior do homem, que é indevassável. Em respeito a tal premissa constitucional, foi editada a lei nº 9.296/1996 que permite a interceptação telefônica, de qualquer natureza, decretada judicialmente, para fazer prova em investigação criminal e instrução processual penal, desde que presentes indícios razoáveis de autoria e participação em ilícito penal com pena de reclusão e também que não haja outro meio probatório. Não atendidas as exigências legais, a prova passa a ser espúria e, como tal, produzirá seus efeitos desconstitutivos.

A doutrina tem por costume distinguir as provas ilícitas das provas ilegítimas. Essas últimas ofendem diretamente normas de direito processual, como, por exemplo, a ordem de oitiva das testemunhas que, se não observada, poderá acarretar a nulidade processual. Aquelas que forem obtidas por meio ilícito, atingem normas do direito material “porque, conforme salienta Avolio, a problemática da prova ilícita se prende sempre à questão das liberdades públicas, onde estão assegurados os direitos e garantias atinentes à intimidade, à liberdade, à dignidade humana; mas também, de direito penal, civil, administrativo, onde já se encontram definidos na ordem infraconstitucional outros direitos ou cominações legais que podem se contrapor às exigências de segurança social, investigação criminal e acertamento da verdade, tais os de propriedade, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, e outros”.[2]

O regramento constitucional estabelece norma rígida e inflexível com relação à ilegalidade das provas: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícitos”.[3] O texto, por si só, deixa transparecer que somente as provas consideradas lícitas, colhidas de acordo com a determinação legal, poderão ser apreciadas e valoradas no processo contraditório. Aquelas que tangenciam a ilegalidade e que foram auferidas por meios escusos, não homologados pelo devido processo legal, serão descartadas e, em caso de utilização, fulminarão de ilegalidade todo o material probatório produzido. Desta forma, pode-se apontar como provas ilícitas a confissão obtida por meio de tortura psíquica, a invasão à privacidade, ao domicílio, à interceptação telefônica, à intimidade, aos segredos, ao sigilo bancário, à comunicação ou qualquer outro ato abusivo das liberdades públicas consagradas constitucionalmente.

Já se posicionou o STJ no sentido de que a interceptação telefônica ilegal não tem força suficiente para determinar restrições aos direitos fundamentais do cidadão:

Não se pode admitir que nenhum tipo de interceptação telefônica seja validamente inserida como prova em ação penal sem a prévia autorização judicial, oportunidade na qual o magistrado realiza o controle de legalidade e necessidade da medida invasiva, em respeito à garantia constitucional que, frise-se, apenas em hipóteses excepcionais pode ser afastada.[4]

O que a Constituição determina é a obediência ao devido processo legal para que nenhuma pessoa seja acusada injustamente com base em provas obtidas por meios considerados espúrios. À regra da acusação justa e equilibrada, que é restrita, soma-se o direito do réu de se defender, de forma ampla, sem que haja invasão aos seus predicados assegurados constitucionalmente. Mesmo que presente o interesse público na área da investigação criminal, imprescindível a ordem judicial para a realização de escutas telefônicas.

Neste sentido é o entendimento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal:

A Constituição Federal giza que o sigilo das comunicações telefônicas poderá ser quebrado ‘por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal’ (artigo 5º, inciso XII), tendo em vista que, em determinados casos, o direito individual é relativizado frente ao interesse público, que prepondera sobre aquele. Havendo previsão legal para que se promova a interceptação de comunicações telefônicas, não se evidencia vício nesse tipo de prova, desde que observados os respectivos preceitos legais.[5]

Feitas tais considerações, é intuitivo concluir que a legislação brasileira trata com rigorismo indesculpável a inobservância do princípio do devido processo legal. Isto porque o direito à prova resulta de uma árdua conquista constitucional e neste patamar somente podem circular as provas consideradas legais, lícitas e legítimas. Jamais, sob qualquer condição, pode prevalecer um conteúdo probatório obtido mediante o arrepio da lei. E, assim, por não possuir uma sedimentação consistente, qualquer legislação em contrário não resistirá.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp;

Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, advogado.

[1] Costa Jr., José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970, p.14. Referida obra representa a monografia que o autor escreveu para conquistar, mediante concurso público, a Cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1969. Representa o marco inicial do princípio constitucional da tutela da intimidade abraçada posteriormente pela Constituição Federal de 1988.

[2]Avolio, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p.39.

[3] Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVI.

[4]REsp 1324107/SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 13 de nov. de 2012. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108096. Acesso em 17 de dez. 2012.

[5] HC 108.147 -Paraná- Rel. Ministra Cármen Lúcia, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 3196193.

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