Compositor baiano é tema de documentário que enfrenta temas controversos como drogas, magia negra e tumultuadas relações familiares
A estreia de Raul – o Início, o Fim e o Meio, quinto longa do festejado fotógrafo Walter Carvalho, se dá sob a expectativa de aumento dos minguados borderôs dos documentários brasileiros.
O filme, que tem potencial para bater muitas ficções nacionais, pretende -- como brinca seu realizador -- “mexer com a metafísica” dos malucos-beleza e tocar a sensibilidade dos espectadores comuns. Há indícios de que ele possa superar os bem-sucedidos Vinícius (270 mil espectadores), Uma Noite em 67 (80 mil) e A Música Segundo Tom Jobim (70 mil).
O maior trunfo do documentário de Walter Carvalho é seu personagem, o roqueiro baiano Raul Seixas (1945- 1989) que deixou depois de intensa, mas breve vida, ampla legião de fãs e seguidores. Outro trunfo é a ótima recepção de Raul nos festivais, nos quais conquistou prêmios de júris populares, júris oficiais (melhor documentário no Festival do Rio e na Mostra Internacional de SP) e Prêmio da Crítica Cinematográfica (no Festival Aruanda, na Paraíba). São poucos os filmes que conseguem sensibilizar, ao mesmo tempo, a crítica, o público e os júris oficiais. Outro ponto forte do documentário está na participação de Paulo Coelho, parceiro musical de Raul e autor de obra literária das mais controvertidas. Depois de assistir ao filme, até o mais empedernido de seus críticos será compelido a admitir que a participação do autor de O Alquimista é ousada, corajosa e essencial à narrativa. Afinal, Paulo Coelho rompe com a “cordialidade” presente em centenas de testemunhos sobre a trajetória de artistas brasileiros. Estes, quando ganham cinebiografias (em vida ou póstumas), são transformados em santos. Além de não fugir de nenhum assunto, o letrista de Al Capone enfrenta todas as perguntas com franqueza, abordem o consumo de drogas, magia negra ou dificuldade de relacionamento entre parceiros.
Outros pontos fortes do filme estão na riqueza das imagens de arquivo selecionadas e na busca de novas vozes para a construção do perfil do biografado. Nomes onipresentes, como Nelson Motta, foram convocados mais uma vez, mas o cineasta apostou também em figuras raras e capazes de arejar os “filmusicais” brasileiros (caso de Bráulio Tavares).
No campo das imagens, graças aos esforços dos produtores (Alain Fresnot e Denis Feijão) e do craque da prospecção de arquivos Antônio Venâncio, é possível ver trechos de Balada Sangrenta (com Elvis Presley fazendo jus, mais que nunca, ao apelido de Elvis Pélvis) e de Sem Destino, o filme de Dennis Hopper que marcou profundamente a década de 1970. No terreno das imagens brasileiras, há também ótimas novidades. As mais incríveis são registros da adolescência de Raul em Salvador.
Por fim, há que destacar os esforços da equipe para equacionar interesses e brigas dos herdeiros de Raul (cinco ex-mulheres e três filhas estadunidenses ou brasileiras). Ao conseguir acessar todas as viúvas e filhas (mesmo que uma delas, nascida nos EUA e muito conservadora, nada queira dizer sobre o pai biológico), o filme apresenta rico e matizado retrato do cantor. Raul viveu de influências da música norte-americana e brasileira e, no plano sentimental, agiu da mesma forma. Casou-se com moças anglo-saxãs e também com as daqui.
Asa Branca
Raul – o Início, o Fim e o Meio começa com o compositor paraibano, Bráulio Tavares (conterrâneo de Walter Carvalho) declamando o poema Uivo, de Allen Ginsberg, e com evocações da geração beat imantadas por imagens dos motoqueiros de Easy Rider (Sem Destino). Em seguida, vemos a imagem de motoqueiro-fã-e-sósia de Raul, sob os acordes de Asa Branca, clássico de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.
Nordestino como Raul, Walter Carvalho faz de seu filme uma soma permanente de influências anglo-saxãs e brasileiras. Em moldes semelhantes aos de Let Me Sing, música que revelou o compositor e cantor baiano num festival de MPB e que somava rock e baião.
Walter justifica a significativa participação do conterrâneo Bráulio Tavares no filme: “ele é poeta, músico, compositor, escritor, jornalista e filósofo. Somos amigos desde quando morávamos na Paraíba. Falar de música sem consultar Bráulio seria um erro sem par”. E por quê? “Por muitos motivos, inclusive por sua capacidade de síntese e clareza ao formular seus pensamentos”.
Há duas outras fortes razões: “Bráulio é da minha geração e como Raul foi roqueiro e fez parte da banda de rock Os Sebomatos, em Campina Grande, na mesma época em que Raulzito atuava, em Salvador, com Os Panteras”. E “Bráulio foi cabeludo, roqueiro e fã de Elvis Presley e como quase todos da nossa geração assistiu ao filme King Creole (Balada Sangrenta/1958) repetidas vezes só para ver o desempenho do cantor americano no filme de Michael Curtiz”.
Magia negra
A entrevista com Paulo Coelho, o mais poderoso trunfo do filme, nasceu cercada de dificuldades. Walter lembra que fez inúmeros contatos com os agentes do escritor para marcar o encontro. A agenda complicada e os muitos compromissos internacionais de Paulo Coelho geraram várias respostas negativas.
O cineasta sabia que, sem o depoimento do principal parceiro de Raul Seixas, o filme sofreria “perda muito significativa”. A situação mudou quando, “um dia, em sua casa na Suíça, Paulo Coelho assistiu, na TV, a retrospecto da vida do Raul Seixas, realizado por ocasião dos 20 anos de sua morte. Ao deparar- se com depoimento de Sylvio Passos no qual ele se referia a mim como um cara sério que estava fazendo um filme também sério sobre Raul, as coisas começaram a mudar”. Paulo Coelho, amigo de Sylvio desde os tempos da parceria com Raul Seixas, decidiu que falaria com Walter Carvalho.
“Marcamos data” – conta o cineasta – “e fomos ao encontro dele em sua casa, na Suíça. Ele nos recebeu com generosidade e comentou que pesara também a recomendação vinda do compositor Roberto Menescal”. Acompanhado do assistente Leonardo Gudel, Walter resolveu pesquisar nas páginas dos livros do escritor-compositor as perguntas relacionadas ao período em que, juntos, eles produziram mais de 30 canções, entre elas os megassucessos Gita, Sociedade Alternativa, Medo da Chuva, Tente Outra Vez, Como Vovó Já Dizia (apelidada de Óculos Escuros) e Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás.
No acerto com o cineasta, Paulo Coelho avisou que se submeteria ao ritual de perguntas por exatos 45 minutos. “Chegamos na hora marcada”, relembra Walter. “Fomos recebidos pela governanta, que pediu que esperássemos, pois o escritor estava se exercitando nas montanhas”. Walter, fotógrafo experiente de quase uma centena de curtas e longas, escolheu o lugar ideal para ambientar a conversa, enquanto seu filho Lula Carvalho (fotógrafo dos dois Tropa de Elite) preparava a luz e a câmera, e Evandro Lima cuidava da equalização dos microfones”.
Paulo Coelho chegou acompanhado da mulher Christina Oiticica. “No início da primeira pergunta” – conta o cineasta – “ele fez alusão aos 45 minutos pré-estabelecidos. Lembrei que esse tempo seria pouco para rememorar suas parcerias com Raul. O papo fluiu de tal forma, que nossa conversa durou exatamente 2 horas e 15 minutos”.
Além de falar sem travas sobre os temas mais espinhosos, Paulo Coelho proporcionou ao filme uma de suas sequências mais hilariantes e intrigantes. Walter Carvalho a rememora: “a conversa se enriqueceu com a inesperada presença de uma mosca que surgiu ali mesmo, na asséptica Suíça”. Para “estranheza do escritor que ponderou diante da câmera não haver moscas em Génève, que aquilo só podia ser a presença inusitada do Raul naquele momento mágico da nossa conversa”.
O autor de Diário de Um Mago não esconde os tempos em que ele e outros discípulos brasileiros do ocultista britânico Aleister Crowley (1875- 1947) se envolveram com magia negra/ satanismo. E o filme cresce ao explorar, com astúcia, a presença do ocultista Euclides Lacerda (que morreria algum tempo depois das filmagens) e seu ajudante fiel, Tonino Buda (que hoje vive em Juiz de Fora). Numa caverna, eles asseguram que Paulo Coelho continua sendo “integrante” da sociedade satânica à qual se filiou décadas atrás. De sua mansão na Suíça, Coelho diz que aquilo é passado. Euclides, sempre assistido pelo fiel Buda, discorda. O efeito cômico das ironias de Paulo Coelho diverte a plateia.
Drogas e família
No terreno das drogas, tema fundamental na história de Raul Seixas, o filme também avança bastante se comparado aos documentários já feitos sobre personalidades culturais brasileiras. Paulo Coelho não esconde nada. Diz que ele e Raul consumiram todas as drogas disponíveis no período. E que eram muitas. O letrista as enumera, sem se preocupar se está chocando seu público contemporâneo, tão diferente dos roqueiros, hippies e malucos-beleza da década de 1970.
Os efeitos devastadores das drogas sobre o organismo de Raul (inclusive seu vício em cheirar éter, mesmo já bastante doente) ganham relevo (sem nenhum sensacionalismo) na narrativa. Na fase final de sua vida, já longe das ex-mulheres, das filhas e da mãe (que morava na Bahia), Raul encontrou na empregada da família, Neusa, uma companheira fiel (uma das ex-esposas do compositor chega a insinuar que a doméstica era apaixonada pelo frágil patrão). Outro companheiro fiel de Raul Seixas foi o roqueiro baiano Marcelo Nova (ex-Camisa de Vênus). Fã assumido do cantor, ele produziu temporada de shows protagonizados pelos dois em grandes palcos brasileiros. O show derradeiro, no Gran Circo Lar, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, é visto no filme em imagens tocantes. Muito doente e delibilitado, Raul consumia suas últimas energias para cantar, sem a potência de outrora, alguns de seus maiores sucessos.
O criador do hit Ouro de Tolo perderia a vida em 1989, com apenas 44 anos, para entrar na história da música popular brasileira, deixando uma legião de inconsoláveis fãs. Alguns fanáticos como Pena Seixas, que se veste como se fosse um Raul reencarnado e que batizou o filho com o nome do ídolo. Tamanha devoção custou-lhe o fim do casamento. Pai e filho seguem juntos, fieis à memória e à obra de Raul.
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