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sexta-feira, 26 de agosto de 2011
O Crime da Ulen
Não é de hoje que o imperialismo norte-americano faz suas vítimas. O capitalismo desenfreado vindo da terra do Tio Sam e a sua capacidade de plantar investimentos colhendo logo em seguida, com rigor espartano, tudo que lhe é e não é de direito, são emblemáticos. Sendo que aqueles que não se encaixam ou mesmo ousam desafiar este método, digamos, nada ortodoxo de exploração de tudo que gere lucro em terras alheias, geralmente pagam um preço bem alto pela sua petulância e ousadia...
Uma dessas pessoas foi o humilde jovem cajapioense José de Ribamar Mendonça que, mal sabia ele, acabaria passando de réu a vítima numa trama complexa de interesses internacionais em terras brasileiras, tornando-se símbolo da resistência popular em detrimento da soberba norte-americana. O ocorrido passaria, anos mais tarde, a ter um cunho ainda mais emblemático por conta de estranhas coincidências que ligavam o assassinado a uma tradicional família de políticos americanos; família esta que sempre fora marcada pela perda de seus integrantes mediante a grandes tragédias.
1920. A população ludovicense padecia com o péssimo serviço prestado pelos bondes de tração animal. Durante o dia, o problema da falta d'água (as fontes remanescentes do período colonial já não supriam as necessidades). Durante a noite, o problema da falta de iluminação pública.
O comandante José Maria Magalhães de Almeida, genro do governador Urbano Santos, resolveu solucionar toda a questão, dos bondes à embalagem do algodão fabricado no Maranhão. Para isso, foi fechar contrato com o advogado e empreiteiro americano Henry Charles Ulen. Este havia fundado na Brodway a Ulen & Co., destinada a fazer trapalhadas para projetos governamentais e agenciar empréstimos da Bankers Trust Company. Logo o povo maranhense — sem luz, sem saneamento, bebendo água de mananciais poluídos — acreditou que um "milagre americano" fora encomendado por Urbano Santos, o que só aconteceria na administração seguinte, de Godofredo Viana, em 26 de março de 1923.
Logo o governo estadual havia contraído um empréstimo externo, provavelmente agenciado pela própria Ulen, de US$ 1, 5 milhão, e um outro interno, no valor de 2,5 milhões de contos de réis, concedido por empresários ludovicenses para a conclusão dos serviços de água, esgoto, luz e tração.
O governo transferiu para os banqueiros o valor referente ao pagamento dos juros e da amortização do empréstimo, comprometendo assim quase 40% da receita estadual. Pior, o contrato dava à Ulen plena isenção de impostos e a incumbia de fazer todo o necessário à execução dos serviços, debitando as despesas ao governo do Maranhão. É mole?
A Ulen entregou as obras seis meses antes do prazo, em 1º de maio de 1923, e inaugurou o serviço de bondes elétricos em 30 de novembro de 1924. Mas havia um problema; quem administraria toda essa estrutura? O governo do estado, em um ramo totalmente desconhecido? Não mesmo. A resolução do problema não é de se admirar; contrataram nos EUA, em 9 de agosto de 1923, a Brightman & Company Incorporation.
Com total isenção fiscal, os EUA administrariam, por 20 anos, o abastecimento de água e esgoto, o fornecimento de energia, os bondes e a embalagem do algodão. O governo assumiu os custos da administração, inclusive despesas do escritório da Brightman, cuja remuneração mensal seria de 10% da renda bruta estimada. Havendo prejuízo, o governo cobriria o deficit!!! O que acontece em seguida é bem fácil de deduzir; os americanos apresentavam dia após dia déficits de caixa para o governo pagar. Virou uma bola de neve! O serviço prestado era de péssima qualidade, além do número reduzido de bondes a circular pela cidade. Logo, a população começou a protestar contra o mal serviço, atrasos e constantes aumentos de tarifa. A situação ficara complicada...
O governo argumentava que não podia romper o contrato sob o risco de pagar severa multa rescisória e indenizações. São Luís aprendera, da pior forma, que lidar com o capitalismo norte-americano em prol de uma corrida brasileira pela urbanização não era uma tarefa fácil...
A sede da Ulen ficava na esquina da rua da Estrela com a rua Direita (Henriques Leal), onde hoje está localizada a Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado. O escritório era chefiado por Harry Isler, e tinha como 2º homem na hierarquia John Harold Kennedy, responsável pela parte contábil da empresa. John Harold era tio de John Fitzgerald Kennedy, que se tornaria presidente dos EUA em 1961 e morreria assassinado em 1963.
Desde a instalação da Ulen em São Luís, em 1923, multiplicaram-se na cidade episódios que revelavam a arrogância, o preconceito e o desprezo de seus funcionários em relação à população ludovicence. Os brasileiros da companhia eram as principais vítimas do tratamento humilhante. Mas os maus-tratos e as atitudes prepotentes não se limitavam às dependências do escritório da Ulen. Quando saíam às ruas para "se divertir", os "gringos" promoviam quebra-quebras homéricos nos bares e arruaças diversas. O mau exemplo vinha de cima. Era conhecido do povo de São Luís o comportamento de Anne Isler, mulher do chefão da Ulen, que aterrorizava os populares quando resolvia ziguezaguear pelas ruas da cidade com seu carrão, à velocidade máxima – na época, uns 100 km/h. Além dos carros velozes, Anne nutria outra paixão: a caça. E não só de animais. Certa vez, caçando ilegalmente cotias e perdizes nas matas do Sacavém desfechou, com sua Winchester de dois canos, vários tiros num vulto que apareceu, de repente, por detrás de uma árvore. A "presa" era um guarda florestal, que teve morte instantânea. Na delegacia, questionada por um policial, Anne declarou, displicentemente: "Really, he was looking like a monkey!" ("Realmente, ele parecia com um macaco!").
O contador John Harold Kennedy não era menos petulante e grosseiro. Era ele quem cuidava da contratação e demissão dos funcionários brasileiros da Ulen, a quem tratava com modos rudes – tratamento do qual não escapavam nem mesmo aqueles que estavam na empresa desde o início, como era o caso do bilheteiro de bonde José de Ribamar Mendonça. Nas suas horas vagas, Kennedy cultivara o hábito de freqüentar o bordel de Laulita, na rua da Palma, onde gastava seus dólares bebendo uísque House, fumando cigarros Look-Strike e, naturalmente, comprando sexo. Entre as moças, sua predileta era Lurdinha, de quem provavelmente contraiu a blenorragia (doença venérea popularmente conhecida como gonorréia) diagnosticada pelo doutor José Murta, que tinha consultório à praça João Lisboa, 190.
José de Ribamar Mendonça, ao contrário dos endinheirados americanos, era um jovem humilde e de hábitos simples. Nascido em Cajapió, na Baixada Maranhense, em 1908, criou-se no campo, onde desde cedo aprendeu a cumprir suas tarefas com responsabilidade. Em 1924, aos 16 anos, migrou para São Luís disposto a ajudar a família; empregou-se, então, na Ulen como bilheteiro.
Depois do expediente, Ribamar gostava de bebericar umas doses de tiquira no botequim do Zé Sampaio, que ficava bem perto do escritório da Ulen. E, antes de ir para casa, no Beco do Couto, dava um passeio pela praça Benedito Leite, fumando cigarros Fidalgo, a marca mais popular da época. Numa dessas caminhadas, Ribamar encontrou sua amada Ita, uma graciosa adolescente de 16 anos que morava onde hoje é o Canto da Fabril.
Quando já estava perto de completar 10 anos de Ulen – o que lhe garantiria, por lei, a estabilidade no emprego – Ribamar, com 25 anos, pensou em constituir uma família com Ita. Ambos não tiveram nem tempo de sonhar. A demissão de Ribamar – sem justa causa, já que era um funcionário aplicado –, na manhã do dia 30 de setembro de 1933, fez cair por terra todos os planos do casal de concretizar uma vida a dois.
Depois da demissão, Ribamar ainda procurou políticos influentes, como o ex-governador Astolfo Serra para interceder por ele, mas não adiantou. Os diretores da Ulen se mantiveram irredutíveis.
No dia 30 de setembro de 1933, o homem que se apresentou, às 17h30, no escritório da Ulen, pedindo para falar com o contador John Harold Kennedy era uma pessoa em desespero. Um jovem maranhense de 16 anos, Alberto Champoudry, atendeu Ribamar, indo chamar John Harold, que estava reunido com o chefe da seção de águas, Ghete Jansen. Ribamar esperou impassível, de pé, junto à grade que separava a sala de espera do escritório propriamente dito. Depois de alguns minutos, John Harold veio até Ribamar. Os dois trocaram poucas palavras e o norte-americano virou-se para voltar à reunião com Ghete Jansen. Nesse momento, o ex-bilheteiro sacou um revólver marca OV, niquelado, cano longo, calibre 32, e desferiu quatro tiros na direção de John Harold; só dois acertaram o norte-americano, mas foram fatais.
Perpetrado o crime, Ribamar, ainda com o revólver na mão, correu em direção à rua Afonso Pena, perseguido por uma pequena multidão. Chegando ao Departamento de Saúde e Assistência, entrou no prédio, sendo perseguido pelo cabo da Força Pública, José Caetano da Silva. Quando o cabo o alcançou, Ribamar conversava com o médico Ático Seabra. Ao ver o policial, Ribamar, calmamente, entregou-lhe a arma e disse: "Matei agora mesmo o bandido que mais me perseguia, mas não estou arrependido".
O assassinato de um dos principais executivos da Ulen teve grande repercussão. Jornais do Maranhão (A Pacotilha), do sul do país (Jornal do Comércio, O Globo, ambos do Rio de Janeiro) e até dos Estados Unidos (The New York Times) deram grande destaque ao assunto. Preso, José de Ribamar Mendonça foi julgado quase sumariamente, no mesmo ano de 1933. O julgamento, como não poderia deixar de ser, teve como pano de fundo a exploração do país pelas grandes empresas internacionais. O governo norte-americano pressionou de todas as formas possíveis a Justiça Brasileira para obter a condenação de Ribamar. Subserviente, o próprio Itamaraty, para não desagradar os EUA e manter abertas as torneiras que periodicamente desaguavam milhares de dólares no país, também se empenhou pela condenação do réu.
Apesar de todas as pressões, José de Ribamar Mendonça foi absolvido em dois julgamentos (o primeiro, por 5 a 2; o segundo, por unanimidade), graças principalmente à atuação do fantástico advogado maranhense Waldemar de Brito, um dos maiores criminalistas de sua época. Sem emprego e sem amor – a bela Ita se afastou, em meio ao turbilhão desencadeado pelo crime –, Ribamar partiu para o Rio de Janeiro, onde conseguiu um emprego como cobrador, na empresa Atlantic. Estava claro que José de Ribamar queria se livrar do pesadelo chamado Ulen, começar vida nova, esquecer de tudo. Mas o implacável "polvo" norte-americano não o esqueceu; em 19 de janeiro de 1944, mais de dez anos depois do crime, ele foi novamente preso, dentro da própria Atlantic, como resultado de um conluio entre o Itamaraty e a Embaixada Americana. Transferido do Rio para São Luís, Ribamar sequer chegou a ser julgado: Waldemar de Brito o livrou definitivamente com um habeas-corpus, em 29 de maio de 1944.
Dez dias depois, Ribamar embarcava de volta ao Rio e ao seu emprego na Atlantic. Lá, o assassino de John Kennedy ficou até morrer, fulminado prematuramente por um ataque cardíaco, em 22 de março de 1952, aos 44 anos. Mesmo com a vida marcada por um inimigo longínquo que a tudo fere sem pena, havia já vencido a sua guerra, estava em paz...
Fonte; blogsãoluisemcena
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