http://www.conjur.com.br/2016-mar-20/entrevista-alberto-zacharias-toron-advogado-criminalista
Por Maurício Cardoso e Marcos de Vasconcellos O
Brasil vivee uma dicotomia, na qual quem critica atitudes arbitrárias do
Judiciário é tachado como alguém “a favor da corrupção”. A partir do
momento em que promotores e procuradores promovem na imprensa uma
campanha “contra a corrupção”, passam a justificar tudo o que fazem
(mesmo seus erros) como um objetivo nobre. E quem vai contra eles —
inclusive advogados no exercício de sua função — é automaticamente visto
como inimigo da sociedade.
O cenário é traçado pelo advogado criminalista
Alberto Zacharias Toron,
que completa 35 anos de carreira este ano. À frente do Toron Advogados,
com 28 profissionais do Direito, ele faz questão de dizer, com humor
ferino, que é o maior escritório criminal em número de pessoas, mas não
em faturamento. Ele é conhecido por sua atuação em casos com grande
repercussão nacional, como a Ação Penal 470, o processo do mensalão, a
operação satiagraha, a operação “lava jato” e, recentemente, entrou no
caso do sítio em Atibaia (SP), que o Ministério Público aponta como
sendo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atualmente ele defende
Fernando Bittar, o dono do sítio de Atibaia que o Ministério Publico
diz que é de Lula. E foi o advogado de defesa do empresário Ricardo
Pessoa, presidente da construtora UTC, citada na "lava jato".
Por
ter atuado em grandes casos, Toron consegue traçar paralelos entre
outros processos e a operação que levou o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara
Federal de Curitiba às manchetes dos jornais. Para o criminalista, é
claro que a mídia vem sendo, cada vez mais utilizada e de forma
deliberadamente ordenada. “Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos
para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito
ortodoxas.”
As mudanças no que diz respeito à Justiça criminal não
vêm só da primeira instância. O novo posicionamento do Supremo Tribunal
Federal, que passou a aceitar que penas sejam cumpridas antes do
trânsito em julgado das decisões, também é alvo das críticas de Toron.
“Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma nova Constituição. Só
fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para isso”, alfineta.
Nem
toda novidade é malvista, no entanto, para o criminalista. A delação
premiada, criticada por muitos de seus colegas, é vista com bons olhos
por Toron. Assim como serve como meio de prova, serve também como forma
de defesa para quem decide colaborar, afirma.
Toron começou sua
carreira de criminalista como estagiário de Márcio Thomaz Bastos,
ex-ministro da Justiça, morto em novembro de 2014. Hoje, já conta nos
dedos os escritórios formados por profissionais que foram seus
estagiários.
Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo
desde junho de 2014, Toron já foi também conselheiro federal da Ordem
dos Advogados do Brasil. Atualmente, entre a atuação na área criminal e
na corte eleitoral, escreve um livro sobre Habeas Corpus.
Leia a entrevista:
ConJur
— Como o senhor vê os últimos acontecimentos relativos à condução
coercitiva do presidente Lula, autorizada pelo juiz Moro, e o pedido de
prisão preventiva feito pelo MP de São Paulo?
Alberto Toron — O pedido de prisão preventiva contra o
presidente Lula é técnica e politicamente tão absurdo que teve o único
mérito de unir a oposição e a situação no Congresso a criticá-lo. Fiquei
emocionado outro dia ao ver o nosso querido professor Miguel Reale Jr.,
peessedebista militante e ácido crítico do PT em pleno
Jornal Nacional
não só criticar o pedido de prisão preventiva, mostrando sua
inconsistência e ilogicidade, como também defendendo o direito de o
presidente Lula externar sua indignação, como cidadão e político que é.
Já a justificativa dada para legitimar a condução coercitiva do
presidente Lula chega a causar arrepios, menos pela inconsistência
técnica e mais pelo cinismo. É duro dizer o óbvio, mas o caldo de
cultura da violência estatal, pseudo legitimada pelo combate ao crime
organizado e a corrupção, assusta. Sim, foram mais de 100 conduções
coercitivas e ninguém falou nada! Ninguém falou nem uma vírgula. Como
bem escreveu na
Folha de S.Paulo meu querido amigo e grande
advogado Luis Francisco Carvalho, (12/3), ninguém reclamou antes porque a
condução coercitiva é menos grave que a prisão... Mas a ilegalidade é a
mesma: só se conduz coercitivamente quem, devidamente intimado, não
comparece para prestar depoimento. Depois, no caso do ex-presidente
Lula, houve, com ou sem intenção, uma nítida ação desmoralizadora; uma
ação que humilha a pessoa. Isso é inaceitável. Advirta-se, porém, é a
cara da "lava jato". As pessoas, salvo o almirante
[Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear],
que cuidaram de proteger bem — ufa, ao menos um —,foram expostas pela
mídia em seus deslocamentos; é o escracho como se fazia na Santa
Inquisição. É uma reedição moderna dos Autos de Fé. Minha mulher que é
arquiteta, tem preferido assistir o
Jornal Nacional, porque ele
está parecendo mais uma novela do que as novelas. Sou de opinião que,
sim, é preciso combater a criminalidade e com rigor, mas respeitado o
devido processo legal e, sobretudo, a dignidade humana.
ConJur — O juiz Sergio Moro poderia determinar a interceptação do advogado de Lula, Roberto Teixeira?
Alberto Toron — Houve dupla violência no caso. Não só à
garantia do sigilo do advogado, mas também à letra da Lei 9.296, que não
permite a divulgação das conversas interceptadas. Elas são sigilosas.
Ainda que o juiz queira abrir o sigilo do inquérito, ele jamais poderia
tê-lo feito em relação às interceptações. Essa divulgação me parece
marcada por flagrante ilegalidade. É mais uma decisão que causa profunda
preocupação. Parece-me muito espúrio que um juiz divulgue isso e
permita causar comoção popular. É mais uma prova de que o juiz Sergio
Moro busca sua legitimação no movimento popular. Sua aceitação não
parece vir da lei, mas da mobilização popular, o que é uma
característica do fascismo. O que estamos vendo é um juiz militando pra
derrubar o governo, isso parece merecer a atenção do Conselho Nacional
de Justiça.
ConJur — Quais foram as causas e quais serão
as consequências da decisão do STF de admitir o cumprimento de pena
antes do trânsito em julgado do processo penal?
Alberto Toron — Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma
nova Constituição. Só fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para
isso. (risos) Não entro no mérito de saber se o sistema penal estava
disfuncional. Talvez estivesse mesmo, não nego. Mas é de um
autoritarismo ímpar fazer justiça com as próprias mãos. O sistema
republicano não outorga ao Poder Judiciário tanto poder. Interpretar as
leis e a Constituição não é pouco; agora, legislar, francamente, por
mais bem intencionados que os juízes sejam, não é, definitivamente, seu
papel. Como escrevi na
ConJur no artigo
Conversa de um criminalista com o ministro Barroso,
parafraseando o professor Eros Grau: se os argumentos funcionalistas
(excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os
normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”. Hoje, se corrige a
Constituição reintroduzindo a sistemática do CPP de 1941, que no artigo
669, I
[. Só depois de passar em julgado, será exequível a
sentença, salvo quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a
prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a
fiança], de franca inspiração fascista, tanto quanto a prisão
preventiva obrigatória. Amanhã, acabam com o HC no STF a pretexto de que
a corte é constitucional. Enfim, se o que vale é “dane-se a
Constituição” e viva a interpretação de plantão dos juízes de turno,
vamos mal, muito mal. Saímos da ditadura militar, mas não para cairmos
na do Judiciário. Ave Maria! — e olha que para um judeu como eu falar
Ave Maria, é porque a coisa tá preta (risos).
ConJur — Como o senhor chegou ao caso do sítio em Atibaia, apontado como sendo do ex-presidente Lula?
Alberto Toron — Pelos jornais.
ConJur — Que diferenças o senhor vê entre a Ação Penal 470, o processo do mensalão, e a operação “lava jato”?
Alberto Toron — O mensalão foi um processo conduzido por um
colegiado, embora tivesse um relator muito voluntarioso, que dissesse
coisas assustadoras do ponto de vista da defesa, seguiu padrões mais
tradicionais que os da “lava jato”. A segunda grande diferença é que no
processo do mensalão, nós não tivemos réus presos preventivamente. E,
muito menos, réus presos para forçá-los a fazer delação premiada. O
ministro Teori Zavascki disse, no Habeas Corpus que ganhei (127.186),
que é inadmissível utilizarem-se de prisões preventivas — que têm um
caráter processual e devem objetivar garantir a ordem pública e evitar
problemas na instituição criminal — instrumentalmente para forçar
pessoas a falar, num desvirtuamento inadmissível. E esse desvirtuamento
foi fundamental para a operação “lava jato”. Enquanto as provas do
mensalão eram essencialmente documentais, uma ou outra escuta
telefônica, as provas da “lava jato” são essencialmente documentais e
decorrentes de delações.
ConJur — As delações estão levando a provas documentais ou são apenas a palavra do delator?
Alberto Toron — Em muitos casos, estão levando a novas provas,
inclusive documentais. O que está errado, no meu modo de ver, é a
utilização da prisão preventiva para forçar a obtenção das delações. E
pior, isso não é uma coisa do juiz Moro, isso é uma coisa que contou com
o aval do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Superior Tribunal
de Justiça. Foi só no Supremo que se discutiu isso. E fora o HC que a
Corte concedeu ao Renato Duque, parece que o STF quis se blindar atrás
da Súmula 691, para não conhecer de nenhum
Habeas Corpus que
questionasse a prisão antes de o julgamento. Mesmo que se diga que
muitas delações foram feitas por réus soltos, não é menos verdadeiro que
tiveram como inspiração as inúmeras prisões e o tempo que duraram.
ConJur — O Supremo tem se anulado?
Alberto Toron — Isso tem a ver com o Supremo querer se
resguardar, não querer botar a mão na cumbuca. Eu achei que o Supremo
talvez tenha se acovardado em enfrentar essas questões. O Supremo quis
enfrentar os diferentes temas no tempo em que ele entendeu devido. Isso o
enfraquece como guardião da Constituição e, particularmente, dos
Direitos Fundamentais de caráter processual. Essa é outra diferença
marcante entre esse caso e o mensalão.
ConJur — O senhor acha que haveria mesmo eficácia nas delações sem as prisões?
Alberto Toron — Seguramente nós não teríamos tantas delações
não fossem as prisões. Mas a delação, tanto quanto o interrogatório, tem
uma dupla face. A delação é um meio de prova, mas ela também é um meio
de defesa. Veja que o empresário Ricardo Pessoa depois de solto
continuou o processo de delação, ele podia ter parado, mas continuou
mesmo depois de solto. Ou seja, há circunstâncias que fazem a pessoa
optar pelo caminho da delação porque é um meio de defesa para ela, antes
de ser uma estratégia da acusação. O acusado quer fazer a delação
porque ele não vê outro caminho de ter uma pena mais branda, senão por
essa via.
ConJur — A atuação do Ministério Público Federal tem sido diferente?
Alberto Toron — No mensalão havia uma denúncia enorme, que
tinha vários capítulos. Por exemplo, o então deputado João Paulo Cunha,
por razões óbvias, não tinha nada a ver com o caso de corrupção a
deputados para que estes votassem projetos do governo. As acusações
contra ele foram muito específicas, mas estavam lá naquele conjunto. Na
“lava jato” foi completamente diferente. Havia uma massa enorme de
informações que não constavam do processo. Estavam dispersas em vários
outros feitos. Em uma das defesas preliminares que oferecemos no caso do
Ricardo Pessoa, a primeira coisa destacada foi o cerceamento de defesa,
por falta de acesso a documentos imprescindíveis para responder à
acusação. Documentos que estavam referidos na denúncia e não estavam nos
autos. Havia referência a delações às quais, a pretexto de não estarem
homologadas, não tínhamos acesso. Como é que vou fazer a defesa do meu
cliente, já tendo sido intimado para isso, sem acesso a documentos
referidos pela denúncia, delações sobretudo. Além de tudo isso, as
narrativas, embora interligadas, estavam repartidas em diferentes
denúncias. Essa fragmentação artificial também cerceou as defesas. Mas
nossos reclamos não foram ouvidos. Nem os nossos e nem o dos outros
advogados. Só havia ouvidos para a importância da acusação e a beleza da
atuação do juiz Moro.
ConJur — A denúncia já falava da delação que não tinha sido homologada?
Alberto Toron — Isso era muito grave. Também tivemos problemas com
download
de processos, atos processuais e eventos. Não faltaram problemas para
subir arquivos no sistema. E os juízes só falavam que não tinham nada a
ver com aquilo. Os advogados também não tinham, mas era preciso se
resolver o problema para se ter um processo justo. Outra coisa que deu
um problema enorme foi o seguinte: a montanha de informações era enorme e
o prazo para defesa era de dez dias. Isso também cerceia a defesa,
porque a investigação vinha de coisas de 2006 e perdurou até 2014 quando
começou a fase ostensiva da operação. O Ministério Público está
acompanhando aquilo em tempo real desde o início, mas o advogado não.
Houve casos em que o
download de arquivos levou oito dias, de
tão pesados que eram. Então como é possível fazer a defesa em dez dias? O
tempero da razoabilidade indica que o que fez o Supremo no mensalão,
dando mais tempo para o procurador-geral da República fazer a
sustentação oral, deveria ser feito em relação ao prazo da defesa para
apresentar sua peça. Mas, para a defesa o prazo é peremptório.
ConJur — O STF também ampliou o prazo para apresentar a defesa.
Alberto Toron — Sim, apontando que no Processo Civil a previsão
normativa de que quando há mais de um litisconsorte passivo — leia-se
corréus no Processo Penal — o prazo conta em dobro. O juiz Moro nem esse
prazo em dobro deu. Ele não queria dar mais tempo. Eu acho que é porque
ele estava fazendo um jogo — inclusive argui a suspeição dele mais de
uma vez — de cartas marcadas. A defesa era chamada só para cumprir
tabela. Tanto faz como será a defesa, ele já está pronto para receber a
denúncia do mesmo jeito. Já estava tudo pronto.
ConJur — Esse jogo combinado já foi apontado em outros momentos?
Alberto Toron — Tem um exemplo concreto importante: o
Ministério Público dizia, no início de 2015, que o acusado atuava em
organização criminosa, associando-se com administradores das
empreiteiras da Odebrecht e OAS, de forma ordenada e permanente com
divisão de tarefas com o objetivo de praticar os crimes de cartel e
fraude ao caráter competitivo da licitação. Acontece que ninguém da
Odebrecht estava denunciado no começo de 2015. Essas outras pessoas
referidas não haviam sido denunciadas por falta de prova? Então eu tenho
que entender que é uma referência inócua, sem valor, anódina. Ou que,
embora existam elementos, por razões particularíssimas o Ministério
Público não as denunciou. Então eu quero saber quais são essas razões
particularíssimas. Questionamos isso e a resposta que tivemos foi, em
resumo: “Não te interessa”. Não deram a mínima. O plural é porque vale
para o TRF da 4ª Região, em Porto Alegre.
ConJur — E isso se repete?
Alberto Toron — A denúncia sustenta que a dita organização
criminosa era constituída, entre outras, pelas empresas Odebrecht e
Andrade Gutierrez. Ocorre que não se vê nenhum controlador ou mesmo
executivo dessas empresas no polo passivo dessa ação penal. Temos aí o
mesmo problema. E depois, ao tratar da imputação de organização
criminosa, diz: “O colaborador Júlio Camargo afirmou que houve pagamento
de propina no consórcio TUC, do qual participava a UTC na obra da
Comperj, tendo o colaborador intermediado o pagamento da propina para a
diretoria de serviço”, leia-se, para o Renato Duque. Só que o Renato
Duque não estava denunciado, então o acusado praticou corrupção,
corrompeu o Renato Duque, mas o próprio não estava denunciado. E mais,
fez isso por meio de um funcionário da Odebrecht e que também não estava
denunciado. A operação envolvendo a Odebrecht eclodiu muito tempo
depois. Mas até lá, eu tinha referências a essas pessoas na denúncia e
elas não estavam denunciadas. Então é um processo penal que estão
chamando de eficientista, mas, na verdade, acaba com pressupostos
mínimos que garantem a um acusado o exercício da defesa. A fragmentação
do todo permitiu ao Ministério Publico criar uma dificuldade quase
intransponível para a defesa.
ConJur — Haveria a possibilidade de se fazer como no mensalão, uma ação penal só para todo o caso?
Alberto Toron — Talvez não houvesse a possibilidade de fazer
uma só ação penal, mas não poderiam ter feito como fizeram. E o tribunal
chancelou isso. Não se pode denunciar corruptor e corrupto em processos
diferentes, porque a corrupção é um ato bilateral. Outra coisa que esse
fatiamento criou é a possibilidade de uma pessoa ser acusada de
associação criminosa e, depois, de cartel. Mas o cartel é uma modalidade
de associação criminosa. Então, facilita-se o
bis in idem e
dificulta-se a discussão da consunção. Jogo bruto, mas não somos tão
burros. Embora impotentes, víamos as coisas e as denunciávamos.
ConJur — Atuar como advogado ficou mais malvisto pela opinião pública durante a “lava jato”?
Alberto Toron — Sim. O advogado, obrigatoriamente, tem um papel
de se contrapor à acusação. Isso significa que eu vou apontar erros,
segurar a marcha do processo para entender melhor, para ir atrás de
provas... À medida que condutas típicas da defesa são apontadas como
chicanas, somos retratados como profissionais do diabo, péssimos para a
sociedade... E na “lava jato” manipulou-se muito as opiniões para
apontar tudo aquilo que a defesa fazia como uma coisa ruim, que queria
encobrir a corrupção, e tudo aquilo que o juiz fazia era exaltado como
uma ação cívica, para reprimir a corrupção que desvia dinheiro de
hospitais, escolas etc.
ConJur — Qual exemplo o senhor citaria disso?
Alberto Toron — Tem um interessante: Ricardo Pessoa e os executivos da Camargo Correa já estavam presos há uns cinco meses. A [
revista]
Veja publicou, então, uma história dizendo que os advogados foram até o José Eduardo Cardozo, [
então]
ministro da Justiça e meu colega de turma, para que ele intercedesse
junto aos ministros do Supremo para revogarem a prisão preventiva.
Primeiro: isso é uma bobagem, é ilusório pensar que o ministro da
Justiça vai fazer isso; ainda mais acreditar que advogados tenham ido
até o ministro para pedir isso. Mas foi com base nessa notícia, sem
nenhuma comprovação, que o juiz Moro decretou uma segunda prisão
preventiva daqueles que já estavam presos há mais de cinco meses. Aliás,
é uma característica desse juiz, ele sempre decreta uma nova prisão
preventiva quando o Supremo está prestes a julgar a anterior, que é uma
forma de manter o acusado preso. Mas, voltando ao caso da
Veja,
não tinha provas de que aquilo ocorreu. Em segundo lugar, se tivesse
ocorrido qualquer infração ou crime, teria sido do advogado, não do
cliente dele. Então não poderiam punir quem estava preso. Na semana
seguinte, a
Veja refaz a história, dizendo que o ministro é que
foi até os advogados, para pedir que eles evitem delações de seus
clientes. Passaram-se 20 dias até o Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, que nunca dá nada para os réus da “lava jato”, conceder a ordem e
revogar a prisão preventiva, que era uma excrescência. Mas, dessa vez,
todo mundo que deu a notícia da prisão, como o
Jornal Nacional, a
Folha de S.Paulo, o
Estado de S. Paulo, ficou calado. Não publicaram uma linha sobre a revogação.
Só é publicado na imprensa o que exalta a figura desse herói nacional que é o juiz Sergio Moro.
ConJur — O mensalão começou com uma denúncia do Roberto Jefferson na Folha de S.Paulo. Mas parece que a “lava jato” aparece mais na imprensa do que o mensalão. A imprensa tem sido mais usada?
Alberto Toron — A mídia tem sido muito mais utilizada e de uma
forma seletiva e ordenada. Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos
para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito
ortodoxas. Eu vejo aqui um desprezo solene por garantias processuais,
como é o caso que a Dora Cavalcanti
[advogada da Odebrecht]
mostrou, de que informações da Suíça foram obtidas sem que se cumprisse o
figurino legal, o procedimento adequado — que era uma cooperação
judicial. Esse caso da Suíça é um exemplo de desobediência ao figurino,
mas que, para o grande público, passa como uma questiúncula. Bem, ou
respeitamos as formulas do processo ou nem precisamos do processo! E
voltamos para a barbárie. Na decisão sobre isso, o juiz Moro diz que o
Ministério Público brasileiro “não pode ser responsabilizado por medidas
falhas de órgãos públicos suíços”. Ele esqueceu que quem pediu isso foi
o Ministério Público Federal daqui. Quem trouxe a prova foi o MP
brasileiro. Isso mostra como ele, juiz, prejulga certas coisas. Ele já
tem o processo todo formatado na cabeça.
ConJur — Mas, para a opinião pública, ele passa uma imagem de eficiência.
Alberto Toron — Na imprensa, colocam como se houvesse uma
contraposição entre eficientismo e garantismo. E que, a pretexto de
sermos eficientes, rompam-se com todas as garantias. Isso é muito ruim
para o Brasil, um país que já tem uma tradição de truculência.
Procuradores da República fazendo diligência como se fossem
investigadores de polícia, ouvindo pessoas, intimidando, é algo muito
ruim. E a partir do momento em que os procuradores fazem uma campanha
contra a corrupção, quem falar contra o procurador está a favor da
corrupção. Nesse “pacote anticorrupção”, eles propõem o estreitamento do
Habeas Corpus e, na grande mídia, quem falar contra a proposta é porque
é a favor da corrupção. É aquela ideia absurda de dicotomia, “ame-o ou
deixe-o”.
ConJur — Na “lava jato”, o Alberto Youssef, que é
apontado como operador, parece que vai ficar com uma pena menor que os
outros acusados, enquanto o Marcos Valério que era apontado como o
operador do mensalão, ficou com a pena maior do que todos os acusados
(40 anos). Por que essa diferença?
Alberto Toron — Aí são opções de defesa. O Marcos Valério não
fez delação, o outro fez. É parte do jogo. E isso não pode ser apontado
como incentivo ao crime. Teve delator que, no acordo, teve que pagar
multa de R$ 55 milhões. Isso não incentiva ninguém. A delação é um meio
de prova na investigação, mas é também uma estratégia da defesa. A
pessoa sofre consequências também. Ela mostra que a Justiça pode ser
mais eficiente.
ConJur — Os advogados da “lava jato” estão
sentindo falta de uma centralização para articular as defesas, como era
feito pelo Márcio Thomaz Bastos no mensalão?
Alberto Toron — Márcio Thomaz Bastos não fazia isso no
Mensalão. É um mito que se criou de que ele era um articulador. Ele
tinha uma liderança natural, mas a única reunião geral que tivemos foi
para decidir se faríamos a defesa oral no Plenário ou não. Nós até
perguntávamos coisas para ele aqui e ali, mas não havia uma defesa
central e organizada. Quem assistiu o julgamento pela TV e ouviu as
diferentes defesas pode perceber o que digo com clareza.
ConJur — E hoje também não há qualquer centralização?
Alberto Toron — Não vou dizer que aqui ou ali os advogados não
conversam sobre o processo, mas acho que estão muito mais focados nos
seus próprios processos e clientes. Na minha opinião, até faltou na
“lava jato” uma união maior — apesar de não saber se se isso teria
qualquer eficácia. Juliano Breda, então presidente da OAB-PR teve um
grande papel na assistência aos advogados de fora.
ConJur — A carta dos advogados apontando os problemas da “lava jato” teve o efeito esperado?
Alberto Toron — Não. Obviamente faço uma ressalva, pois é fácil
falar depois que aconteceram as coisas, mas acho que a carta não teve o
efeito desejado porque ela deveria ter sido escrita por um publicitário
para atingir o grande público, não por um advogado.
ConJur
— O senhor falou que o discurso da defesa está perdendo a guerra na
opinião pública. Qual é a lição de casa a ser feita pelos advogados?
Alberto Toron — Em primeiro lugar, a OAB tem que ser mais
atuante. Reconheço, sim, que a OAB também encontra dificuldades. Eu fui
diretor da Ordem e sei que quando a entidade fala que o índio é
massacrado e que os direitos humanos são desrespeitados, sua voz ecoa.
Mas quando ela fala de um problema específico da advocacia, isso não
interessa aos jornais. A OAB precisa fazer um programa de
conscientização da importância do direito de defesa, até mesmo nas
escolas. Do mesmo jeito que é importante ter segurança contra a
criminalidade, é importante ter segurança contra o arbítrio dos agentes
estatais, contra a prepotência dos agentes estatais. O papel do advogado
é exatamente esse, conter o arbítrio.
ConJur — O drible
do MPF para trazer as provas da Suíça, o contato direto da Polícia
Federal com a BlackBerry no Canadá e as omissões nas transcrições de
delações podem acabar anulando a “lava jato”?
Alberto Toron — São coisas vergonhosas, mas não anularão a
operação. Anularão, quiçá, aqueles documentos, aquelas delações, e tudo
que depender deles.
ConJur — O Judiciário brasileiro é paternalista com o Ministério Público?
Alberto Toron — Olha, o Ministério Público tem uma posição
muito privilegiada em relação ao Judiciário. Primeiro, o cara senta ao
lado do juiz, o que é um absurdo. Rompe-se no plano simbólico a ideia de
igualdade. No Júri isso é fatal. Depois, os dois são funcionários
públicos, seguem carreiras paralelas, eventualmente passam pelas mesmas
comarcas. Há uma crença de que o Ministério Público é mais imparcial,
não faz trapaça, e a “lava jato” está mostrando que, quando quer, faz
sim. Exemplo disso foi a supressão do trecho da fala de uma testemunha
em favor de Marcelo Odebrecht. O Ministério Público é encarado como
defensor da sociedade. No processo penal, isso é uma falácia. No
processo penal, o Ministério Público é parte, ele não fala em favor da
sociedade, mas em favor da tese acusatória que ele defende. A se pensar
ao contrário, toda vez que um juiz absolvesse um acusado, estaria
julgando contra a sociedade — o que é uma bobagem. Essa ideia de que o
MP é sempre o representante da sociedade precisa ser urgentemente
revista. Ele está mais para representante do Estado, sem dúvida nenhuma,
o que é uma coisa diferente, sem demérito.
ConJur — A “lava jato”, assim como o mensalão, está criando uma nova jurisprudência?
Alberto Toron — Estão criando um novo padrão de atuação. Eu
vejo hoje juízes muito propensos a decretar prisões, a repetir o modelo
da “lava jato”. Como me disse uma vez o atual ministro Barroso:
Hard cases make bad Law [
casos difíceis fazem leis ruins, em tradução livre], no sentido de jurisprudência ruim. Nunca esqueci isso.
ConJur — O comportamento do júri mudou?
Alberto Toron — Mudou muito. Outro dia, conversando com o
ex-presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, Adib Casseb,
ouvi que o júri tem absolvido muito mais PMs acusados de assassinatos,
do que a Justiça Militar. Isso se explica porque o júri vê aquele como
“o cara que mata bandido”. É um jogo a favor da segurança, mesmo que
condenando um inocente (quando ele é “pobre e preto”, para usar um
antigo jargão) ou absolvendo um culpado (quando ele é de um grupo de
extermínio). Ou seja, é o punitivismo servindo para absolver alguém, mas
aquele alguém que fez “justiça” da forma mais terrível possível.
ConJur — O senhor concorda que o Brasil vive a criminalização da riqueza?
Alberto Toron — Isso precisa ser melhor entendido. Eu chamo
atenção desde os anos 1990 para o fato de que o modelo do sistema penal
mudou. Classicamente, a visão marxista do Direito Penal é que ele é um
instrumento de dominação da burguesia sobre o proletariado. Depois, se
percebeu que o Direito Penal pode ser um instrumento eficaz, não apenas
para perseguir “pretos, pobres e putas”, os três Ps, mas para perseguir
outros segmentos sociais. Então, na redemocratização do Brasil,
sobretudo a partir de 1988, o que nós temos é a utilização do Direito
Penal para alcançar novas situações, como o crime do colarinho branco,
crime fiscal, crime ambiental, concorrência desleal e outras tantas
práticas. Mas não basta apenas a previsão normativa. É necessária a
vontade política de perseguir esses crimes. Com a redemocratização
assistimos isso. Também nos EUA e na Europa houve uma ascensão do
Direito Penal para perseguir crimes de uma camada social que antes era
infensa a persecução penal e que hoje se senta não apenas no banco dos
réus, como vai para a cadeia também.
Eu vejo no Brasil, nessa operação “lava jato”, o cruzamento de uma
estrutura político-econômica podre, que é o que propicia o tipo de
corrupção noticiada, com a estrutura judicial e do Ministério Público
absolutamente moderna e independente. Esse cruzamento de vetores das
estruturas deu na repressão a que assistimos. Mas é preciso muito
cuidado ao fazer previsões sobre o resultado disso. Quando se teve o
processo do mensalão, alardearam que seria um marco contra a corrupção.
E, aparentemente, quando o processo do Mensalão ocorria, as práticas
noticiadas hoje, se elas realmente existiram, estavam acontecendo. Isso
se dá porque a base real que permitia essas práticas não foi tocada.
Então, se não se tocar nessa estrutura que é política e econômica, a
repressão por si só não mudará o cenário brasileiro — talvez sofisticará
a prática.
ConJur — A legislação penal é instrumento para mudar essa estrutura?
Alberto Toron — É, também. Mas é ilusório, é místico, é ingênuo
até, pensar que a lei penal sozinha vai mudar isso. Não vai. Precisa
ter uma vontade política de mudar a estrutura do Estado.
ConJur — Como tem sido a experiência de ser juiz no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo?
Alberto Toron — O exercício de ser juiz é uma coisa muito árdua
para mim, pois meu treino como advogado é de examinar as coisas pelo
ângulo da parte. A advocacia, sobretudo a criminal, é uma profissão que
exercita a visão unilateral. O advogado “escaneia” o processo procurando
onde quer chegar, o que é defender. Já como juiz, o exercício é olhar
todos os lados e ver o desfecho mais justo. Foi muito bom para mim, mas
foi penoso. Ampliou minha visão. Uma das coisas que eu mais aprendi é:
diga muito falando pouco. Escreva pouco. Quanto menos você escrever,
será mais contundente. Saber expor os fatos é a coisa mais importante
que tem para o juiz. Se você citar uma doutrina, um julgado, ok. Mas, o
mais importante é expor bem os fatos. Eu aprendi também que a
sustentação oral é uma coisa muito importante. A sustentação oral bem
feita pode virar o caso. Eu já desconfiava disso como advogado e, como
juiz, confirmei.
ConJur — O senhor concorda com a ideia do vice-presidente Michel Temer de importar o modelo português de semipresidencialismo?
Alberto Toron — Eu sou a favor do parlamentarismo. Acho que ele
aliviaria muitas crises. Mas esse modelo “nem lá nem cá”, “café com
leite”, tenho minhas dúvida. Parece uma solução meio golpista, como
fizeram com o João Goulart para ceifar-lhe os poderes. Como quer que
seja, o Brasil não pode ficar como está. É necessário um rearranjo
político para que o governo volte a assumir as rédeas do país.
ConJur
— O ministro Dias Toffoli defende a redução no número de partidos para
ter representação no Congresso, com a imposição de uma cláusula de
desempenho. O senhor concorda?
Alberto Toron — Concordo. Tem que ter um mínimo de
representatividade para se constituir um partido. A gente saiu do oito
para oitenta e hoje alcançamos uma coisa absolutamente irreal.
ConJur
— Quando o Supremo estava julgando o fim das doações eleitorais por
empresas, o ministro Gilmar Mendes disse que isso transformaria o Brasil
em um laranjal, porque as empresas parariam de doar e poriam CPFs para
doarem em nome delas. Estamos correndo esse risco?
Alberto Toron — Sim. Eu sou a favor da doação das empresas, com
a imposição de limites. Acho errado não poder doar. Também entendo que a
Lei da Ficha Limpa representa uma espécie de tutela indevida do Estado
sobre o cidadão eleitor. Na minha opinião, cabe ao eleitor dizer: “esse
cara está condenado, é ficha suja, não serve”. E não caberia ao Estado, a
priori, impedir a candidatura desse ou daquele candidato por conta da
ficha. O povo é que tem que ter discernimento para escolher quem irá
representa-lo no Parlamento.
ConJur — O senhor é favorável à legalização das drogas?
Alberto Toron — Eu acho que tem que ser descriminalizado o
consumo e, no futuro, que ainda está distante, a própria produção e
comercialização também devem se subordinar a um modelo que não é o
penal. Acho interessante a solução que o Uruguai deu. E estou firmemente
convencido de que, ao contrário do que muitos apontam, a legalização
não vai aumentar o número de usuários. Eu dou um exemplo simples: você
bebe?
ConJur — Sim.
Alberto Toron — Eu também bebo. Você bebeu antes de vir para cá conversar comigo?
ConJur — Não.
Alberto Toron — Você não bebe normalmente durante seu trabalho?
Eu também não. Mas nós poderíamos ter bebido. Ter tomado quatro uísques
e vindo para esta entrevista completamente bêbados. Por que a gente não
veio bêbado? Porque você tem um compromisso com o seu trabalho e com o
seu nome e eu também.
ConJur — E não seríamos presos se estivéssemos bêbados...
Alberto Toron — O contraestímulo ao uso da droga lícita não é o
encarceramento ou a ação penal. Contraestímulos são os vínculos que eu
tenho com certos valores. O valor profissional e familiar e meus
compromissos me obrigam a ter certos comportamentos que eu,
naturalmente, desempenho. Isso muda o nosso foco.
O adultério foi descriminalizado e quantas vezes alguém falou: “Eu não
vou ter um caso com aquela mulher, porque a pena é de um a seis meses de
detenção?”
ConJur — Acho que nunca.
Alberto Toron — E podemos inverter esse pensamento. Ninguém diz
“vou ter um caso com aquela mulher porque agora não dá mais cadeia”. O
que impede (ou permite) a pessoa de ter um caso fora do casamento são os
vínculos pessoais e compromissos sociais. Voltando ao caso das drogas,
eu poderia ter comprado um baseado antes de vir para cá. É facílimo de
conseguir maconha. Eu podia ter dado um tapa, dois, três... Não dei
pelas mesmas razões que não vim bêbado.
Com a legalização, em um primeiro momento, haveria uma maior
visibilidade, as pessoas iam “sair do armário”, mas não iria
necessariamente aumentar o número de usuários. As pessoas continuariam
trabalhando, continuariam fazendo suas coisas. Quem vai dirigir não pode
usar droga, do mesmo jeito que é crime beber e dirigir. Mas para quem
está na praia relaxando, qual é a diferença de tomar uma caipirinha ou
fumar um baseado? Precisamos aprender a lidar com as diferenças e
superar preconceitos. Do contrário, insistiremos em fórmulas inadequadas
para enfrentar o grave problema que as drogas podem representar nos
casos de dependência. O crack está e não nos deixa mentir. Mas uma coisa
é a dependência, que tem que ser encarada como doença, e outra é a
utilização recreativa. Em ambos os casos o Direito Penal, mais dificulta
do que ajuda a encaminhar as situações. Digo isso, desde os anos 70,
quando estava na faculdade e fico feliz quando vejo alguém como o
presidente Fernando Henrique Cardoso defender a descriminalização do uso
das drogas. “Estamos juntos” (risos).